Enquanto movimento social, o Movimento Negro precisa se questionar todos os dias: de onde vêm nossos discursos? A quem cabe pronunciá-los? Às mulheres negras não se pode mais impor o silêncio. Assim como, não se pode mais fechar os olhos aos poucos negros, que juntamente com o apoio de movimentos sociais majoritariamente brancos, buscam apenas autopromoção, ascensão social e/ou status de ativista popular nos movimentos negros. Basta!
A comunidade negra de Santa Maria – Rio Grande do Sul, em especial, os dinamizadores negros e negras que trabalham voluntariamente colocando em prática as ações do museu negro e comunitário da cidade, reivindicam através das palavras escritas por Giane Vargas Escobar – ex-Diretora Técnica do Museu Comunitário Treze de Maio (2001 até 2012), Idealizadora do Projeto de Revitalização do Antigo Clube Treze de Maio no atual Museu Comunitário Treze de Maio e ativista da Museologia Social.
Essa Carta Aberta à população de Santa Maria, diz respeito ao conflito ocorrido no último processo eleitoral do Museu Treze Maio. Nela destacam-se explicações sobre quem são os gestores do Museu; o afastamento da ex-diretora Giane Vargas Escobar e a necessidade da indicação de outra pessoa para este cargo em caráter emergencial; o repúdio ao slogan “Negro sem diploma também pode” da página “Democratiza Treze”, que utilizou deliberadamente a simbologia contida na marca do Museu; além do apoio à decisão do grupo que escolheu João Heitor Silva Macedo como Diretor Técnico dessa organização.
Essa Carta Aberta simboliza a o início do fortalecimento das articulações negras e verdadeiramente coletivas na cidade! Pelo protagonismo negro nos espaços negros e pelo respeito e valorização das mulheres negras no Movimento Negro!
CARTA ABERTA À POPULAÇÃO DE SANTA MARIA
Venho por meio desta carta aberta declarar que acompanhei de longe, durante o ano de 2014, o processo conflituoso de escolha do NOVO DIRETOR(A) TÉCNICA (A), cargo voluntário, do MUSEU TREZE DE MAIO, o qual pensei que haveria de chegar a uma solução justa e sensata, que correspondesse às expectativas da comunidade. Quero aqui também manifestar o meu apoio à decisão do grupo que escolheu João Heitor Silva Macedo como Diretor Técnico dessa organização. O fato é que esse conflito culminou na abertura de um processo judicial e agora um juiz é que decidirá o destino da administração do Treze, já que não houve acordo entre os grupos que lá estavam.
MAS QUEM SÃO OS GESTORES DO MUSEU COMUNITÁRIO TREZE DE MAIO?
O MTM desde a sua fundação oficial em 2003 contou com três partícipes em sua gestão:
- A AAMTM – A Associação dos Amigos do Museu Treze de Maio, fundada em 2002, com estatuto e personalidade jurídica. É uma associação de caráter cultural que tem por objetivo apoiar as atividades do Museu. NÃO TEM CARÁTER TÉCNICO e qualquer associado, membro da comunidade, pode se candidatar para exercer o cargo de PRESIDENTE.
- O MTM – oficializado no ano de 2003, tem estatuto e personalidade jurídica. Por decisão daquela comunidade interessada em revitalizar o prédio, em consonância com os preceitos da museologia social e comunitária, além da possibilidade de agregar profissionais técnicos advindos dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado das universidades, especialistas em suas áreas de atuação, definiu-se por ser uma diretoria EMINENTEMENTE DE CARÁTER TÉCNICO (Museologia, Arquitetura, Administração, Conservação e Restauro de Bens Culturais, História, Direito, Engenharia, Arquivologia, Comunicação, Economia, Educação, etc) reafirmando aí o PROTAGONISMO NEGRO E ESPECIALIZADO em diversas áreas de atuação, com vistas a dar conta das demandas dos editais de fomento cada vez mais concorridos e exigentes, a partir de uma perspectiva negra.
- A PREFEITURA MUNICIPAL – cogestora do museu desde que tombou o prédio no ano de 2004, após 2 anos de luta do movimento negro, AAMTM e técnicos que foram em busca de recuperar as histórias e memórias do antigo clube e montar um dossiê com vistas ao reconhecimento de sua importância, o que se deu através da LEI 4809/04 de 28/12/2004, que declarou o Treze PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA. A partir desse ato administrativo, o poder público municipal passou a contribuir mensalmente com o pagamento de água e luz da instituição. Mas nunca interferiu em sua gestão, já que todos os projetos e recursos financeiros para a manutenção do espaço físico ficaram sob a responsabilidade dos técnicos que elaboravam projetos, captavam recursos e os encaminhavam para instituições de fomento.
Cada um desses gestores tem as suas responsabilidades e para cumpri-las, em especial na DIRETORIA TÉCNICA, faz-se necessário CONHECIMENTO TÉCNICO E ESPECIALIZADO.
No ano de 2012, quando PRECISEI AFASTAR-ME da direção técnica do MTM, fora do período de eleição, EM CARÁTER EMERGENCIAL, fui em busca de um profissional que pudesse assumir até o final da gestão 2011-2015, as funções pertinentes ao CARGO VOLUNTÁRIO de Diretor Técnico.
A pessoa indicada para exercer este cargo, embora não possuísse a formação técnica nas áreas exigidas pelo Estatuto do MTM, dispunha de um histórico comprovado e especializado de atuação em clube social negro, onde destacava-se a elaboração de projetos para captação de recursos – prática urgente e indispensável para o funcionamento do Museu Treze de Maio.
Quando falamos em gestão de um museu comunitário precisamos entender que nenhum museu comunitário é igual ao outro, que se trata de uma construção de uma determinada comunidade num determinado tempo. E tudo o que aconteceu no Museu Treze de Maio foi sendo construído paulatinamente, ano após ano, por meio de um aprendizado diário, muitas vezes sofrido, doloroso e dispendioso, já que todos os seus colaboradores tiravam dinheiro do próprio bolso para manter o espaço minimamente habitável.
Algumas obras foram executadas nos anos de 2006, 2007 e 2008, sempre em parceria com a Prefeitura Municipal, entretanto, os recursos nunca foram suficientes para executar uma obra completa de recuperação da edificação e com o passar do tempo, um canto aqui e outro ali deixavam a desejar, principalmente com as chuvas. O que se via no museu era água como na rua. E não foram poucas as vezes em que eu e muitos dos dinamizadores do museu tivemos que limpar e retirar água de balde de dentro daquele espaço para que então pudéssemos dar início às nossas atividades.
Mas o importante é que mesmo diante das patologias do prédio e das intempéries, nunca deixamos de acreditar que podíamos continuar lutando por aquele espaço que um dia foi construído também com sacrifício pessoal e coletivo de trabalhadores da ferrovia e tantos outros profissionais que ali depositaram um sonho de ver a comunidade negra com um lugar digno de lazer, que pudessem se sentir em casa, já que ao longo do século XX, ao menos no Rio Grande do Sul, negros e negras eram proibidos de entrar em clubes brancos.
A TENTATIVA DE DESESTABILIZAR O QUE A COMUNIDADE NEGRA RECONSTRUIU
Quero também dizer que não concordo com as ações desrespeitosas do grupo contrário à eleição de João Heitor Silva Macedo, pessoas que confiei ao precisar me afastar do Museu para poder dar conta do doutorado. Causou-me espanto e decepção ver que pessoas que fizeram seus estágios acadêmicos e profissionais no museu ou foram convidadas a exercer alguma atividade técnica durante os seus cursos de graduação e que vivenciaram e aprenderam tanto dentro daquele espaço são as mesmas que construíram a página intitulada “Democratiza Treze” e que usaram deliberadamente a simbologia contida na marca do Museu, lançada no ano de 2003, quando o clube completou 100 anos, na tentativa de desestabilizar o que ao longo desses anos a comunidade negra reconstruiu e lutou para ter de volta.
Sim, temos aqui dois pontos de vista diferentes e eles envolvem afetos e desafetos, pois muitas vezes aqueles que seriam nossos supostos pares também podem ser misóginos, sexistas e até mesmo racistas, reproduzindo e demonstrando de todas as formas o seu ódio às mulheres negras, em especial às que buscam aprimoramento acadêmico. Observei também a supervalorização das mulheres brancas em detrimento das mulheres negras, dentro de uma organização negra, pela não correspondência aos padrões estéticos brancos de representação das mulheres. Não foram raras as oportunidades em que se testemunhou a desvalorização das mulheres negras, do seu corpo negro e do seu protagonismo negro. E isto só sabe quem sentiu na pele a discriminação, conviveu e presenciou esse tipo de atitude dentro do Museu.
Entrevistei, na semana que passou, uma rainha do carnaval do antigo Clube Treze de Maio e ela relatou-me o quanto foi feliz naquele Clube. Contou-me também como se deu o processo de decadência do Treze, citando que para além das fragilidades de gestão dos administradores negros, naquele momento, um dos fatores que levou o clube a sucumbir foi a ausência de protagonismo negro, quando o Clube Treze de Maio passou para mãos de gestores brancos, que viam naquele lugar parte da solução para as suas próprias crises financeiras.
Esse clube social negro, que a comunidade negra decidiu ressignificar e reinventar em um museu comunitário, a partir do ano de 2001, quando o encontramos depredado e abandonado, estava com dívidas imensas de água, além de gatos de luz, que descobrimos assim que entramos no prédio escuro, em vias de ser leiloado e transformado em um depósito de supermercado ou até mesmo numa pizzaria. Destino de muitos clubes sociais negros que já desapareceram. Aquele grupo se uniu e saldou aquelas dívidas com seus próprios recursos.
Ao final dos anos 1990, em função de todas as crises internas do clube e da abertura dos clubes brancos para os negros, além daquelas dificuldades de ordem financeira, o Treze passou a ser sublocado por um homem branco que promovia atividades que nada tinham a ver com aquilo que por quase um século o antigo clube almejou. Assim, no início dos anos 2000 um grupo de pessoas ligadas ao movimento negro e ao clube deram início a uma longa batalha para reaver a sua sustentabilidade, a sua legitimidade e a credibilidade em sua própria casa, que não mais lhes pertencia.
E foi no dia 22 de junho de 2002 que a chave do Clube Treze de Maio foi entregue em minhas mãos, com um pedido de um dos últimos presidentes do Clube Treze de Maio para que nós cuidássemos com carinho daquele espaço. Aquele antigo gestor do Clube Treze de Maio veio a falecer três anos após esse dia.
Tudo o que fizemos durante os 12 anos que estivemos na gestão do Museu foi legitimado por grupos ligados ao movimento negro e antigos sócios do centenário Clube Treze de Maio. Fomos também nos apropriar dos saberes da museologia para, junto com a comunidade negra, darmos início ao processo de revitalização do prédio, com uma vontade imensa de memória, de ajudar a montar as peças que formavam um precioso mosaico sobre a história do Treze, de ir em busca de mais informações sobre as pessoas que um dia frequentaram aquele patrimônio material e imaterial.
Quero também dizer que o meu afastamento do cotidiano do Treze não significou o meu rompimento com o Museu, muito antes pelo contrário, na academia dou continuidade às pesquisas e investigações sobre as pessoas, histórias e memórias que nos foram negadas e invisibilizadas por séculos, em especial das mulheres negras. Serei sempre grata ao Treze por todos os ensinamentos e continuarei sua eterna colaboradora.
É importante ressaltar que toda história possui diferentes versões e essa é a minha posição. A minha versão de uma história que não terminou, mas que precisa ser escurecida por conta de todas as injustiças que ao longo do ano de 2014 foram divulgadas midiaticamente e auferidas contra pessoas que durante anos a fio se dedicaram a construir o Museu Comunitário Treze de Maio.
Aproveito a oportunidade para REPUDIAR PUBLICAMENTE O SLOGAN DO MOVIMENTO “DEMOCRATIZA TREZE”: “NEGRO SEM DIPLOMA TAMBÉM PODE!”. Não pretendo com este repúdio desqualificar nossos irmãos negros e negras alijados da oportunidade de frequentar uma universidade, mas diante do histórico de lutas do movimento negro pela inserção de nossa comunidade negra em espaços acadêmicos, vide a política de cotas raciais nas universidades e em concursos públicos, soa contraditória e ofensiva a ideia de que podemos ou devemos abrir mão de nos qualificarmos para exercer qualquer cargo que seja. Se é a educação o único caminho para a verdadeira liberdade, que não deixemos nos aprisionar por uma falsa ideia de igualdade que menospreza nossas lutas e limita nossos horizontes.
Fanpage do Museu Treze de Maio
Assembleia e a comunidade negra de Santa Maria presente no MTM!
Giane Vargas Escobar
Ex-Diretora Técnica do Museu Comunitário Treze de Maio (2001 até 2012)
Idealizadora do Projeto de Revitalização do Antigo Clube Treze de Maio no atual Museu Comunitário Treze de Maio
Ativista da Museologia Social
Santa Maria – RS, 6 de março de 2015.
Imagem destacada: Kizomba, Dia Nacional da Consciência Negra em Santa Maria. Créditos: Fábio Camargo
Links:
“Abertura Oficial 26ª Semana Municipal da Consciência Negra de SM”
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.854901934549391.1073741945.508386479200940&type=3
“KIZOMBA! Dia Nacional da Consciência Negra em Santa Maria”
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.862549513784633.1073741951.508386479200940&type=3