Dia desses cismei que tô suja. E a ideia ainda não passou. Deve ter virado verdade.
É que com certeza deve ter essa sujeira entranhada dentro da minha carne, que deixa sujo tudo que toco. Encardida! Acho que devo me lavar direito, sabe? Esfregando melhor, escolhendo uns cheiros mais fortes para passar com força em meu corpo. Se eu fizer uma rotina de cuidados, meu cheiro vai mudar, a sujeira vai sair a cada esfregão. Vou raspar os pelos das pernas e clarear os pelos dos braços. Ouvi quando disseram que clarear os pelos me deixaria bem mais clarinha. Vou seguir as dicas e ser cheirosa. E aí finalmente ninguém vai perceber que já tive um cheiro ruim, que já fui mancha escura, porque vou ter me limpado o suficiente.
A partir desse dia vou poder levantar o braço em paz, usar shorts em dias de piscina, quem sabe até biquíni na praia com as amigas. Ninguém vai saber que já fui descuidada, desleixada, mal lavada, fedorenta, estranha. Vão me perceber mais clarinha. Daí então serei aceita. Certeza!
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Não tá dando muito certo.
Será que tem outro jeito?
– Ei, menina. Vem aqui! Tá tudo errado mesmo. Mas não em você! Abraço. Não tenha medo, que eu gosto do seu cheiro. Me abrace de verdade.
Respira.
Olha tuas mãos. Teus braços. Vai subindo e repara bem em todas as suas partes. É uma cor que vem de antes, é seu movimento no mundo, desde quando levanta até a hora que passa na rua colorindo os passos de marrom.
Vem! Vamos passear na chuva, no mato, na terra molhada. Vai lá! Teu cheiro é como essa mistura de pés descalços que quando pisam fazem tudo cheirar a mato e cor de barro. Esse cheiro que tudo refresca e faz mistura com a natureza da gente. Você é aquilo que um dia ouviu na aula de literatura e não deu mais para esquecer: sinestesia. Lembra o que é? Hoje em dia é teu cheiro encontrando tua cor. Teus fluidos que saem querendo que você toque, sinta, veja para dentro antes de ouvir tanta claritude de fora.
Às vezes, minha menina, o que combina com sua cor é a terra que tudo dá, de onde vieram os seus, por onde você gosta de correr, disposta a tudo sentir.
Venha aqui, me abrace. Apague o claridão que já gritou por tempo demais.
Deixa eu te cheirar e viver em paz com a gente. Vem, deita! Vamos dormir.