A infância de meninas negras é frequentemente marcada por estereótipos racistas que nos desumanizam e sexualizam mesmo antes de entrarmos na puberdade. Uma pesquisa do Georgetown Law Center on Poverty and Inequality publicada em junho deste ano demonstrou que adultos consideram meninas negras “menos inocentes” do que meninas brancas da mesma idade. Rebecca Epstein, uma das autoras do estudo, diz que “em essência, adultos parecem ter diferentes visões e expectativas em relação às meninas negras, especialmente na metade da infância e começo da adolescência”.
O estudo, intitulado Girlhood Interrupted: The Erasure of Black Girls’ Childhood, demonstrou que pessoas adultas acreditam que meninas negras precisam de menos atenção, menos proteção e menos apoio que meninas de outras raças. Os participantes da pesquisa também creem que meninas negras são mais independentes, entendem mais de sexo e de temas adultos que outras meninas.
Nenhuma dessas constatações foi surpreendente pra mim: para a maioria das pessoas, menina negra nunca tem “cara de criança”. Nossos corpos são hipersexualizados desde muito cedo, de uma forma extremamente agressiva. Somos as vítimas mais frequentes de violência sexual na infância. O número de meninas negras que são afetadas por diferentes arranjos de exploração infantil é enorme. A violência recai cotidianamente sobre os corpos de mulheres negras, em proporções assustadoras.
As autoras da pesquisa “Girl Interrupted” explicam que por serem consideradas “menos inocentes”, meninas negras são mais penalizadas nas escolas do que suas colegas não-negras. Em 2015, Kimberlé Crenshaw (pesquisadora americana que cunhou o termo interseccionalidade) também se debruçou sobre o tema e publicou o estudo Black Girls Matter: Pushed Out, Overpoliced and Underprotected. Junto com as demais autoras, Priscilla Ocen e Jyoti Nanda, Crenshaw examinou dados de escolas públicas de Boston e Nova Iorque e os resultados mostraram que meninas não-brancas (em especial, meninas negras) são submetidas a ações disciplinares mais rígidas e mais frequentes.
Outro estudo, produzido pelo National Women’s Law Center, demonstrou que em todos os estados dos EUA, as estudantes negras têm duas vezes mais chances de serem expulsas da escola, e não porque elas se “comportam mal” com mais frequência ou têm comportamentos “mais graves” que meninas de outras raças.
Um cenário parecido acontece aqui no Brasil. Segundo Ellen de Lima Souza, mestre e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSCar, a escola normalmente é um ambiente inóspito para as crianças negras. A autora pesquisou como crianças negras são vistas por profissionais de educação no Brasil e constatou que desde bebês, as crianças negras são mais punidas do que as crianças brancas, recebem apelidos depreciativos e, nas situações de conflito, são as preteridas ou as culpadas.
O “Girlhood Interrupted: The Erasure of Black Girls’ Childhood” também mostra que a noção de que meninas negras são “mais adultas” e “menos inocentes” tem repercussões no sistema de justiça e contribui para que elas sejam julgadas com mais severidade do que meninas não-negras.
O livro Pushout: The Criminalization of Black Girls in Schools, da Monique Morris, oferece um panorama aprofundado sobre o tema. Morris é uma pesquisadora com mais de três décadas de experiência nas áreas de educação, direitos civis e justiça social e fundadora do National Black Women’s Justice Institute (Instituto Nacional de Justiça de Mulheres Negras). Os capítulos de Pushout trazem reflexões a partir de dezenas de entrevistas com meninas e jovens negras que relatam ter vivido experiências de racismo e machismo nas escolas em que frequentaram.
Morris diz que é preciso entender como os estereótipos sobre feminilidade negra influenciam as experiências das meninas negras na sala de aula. O argumento central do livro é que muitas meninas negras em idade escolar estão sendo afetadas (fisicamente e mentalmente) pelas crenças, políticas e ações racistas que degradam e marginalizam sua existência, gerando condições que as expulsam das escolas e as deixam ainda mais vulneráveis. E, no caso dos EUA, Morris aponta que essa situação de vulnerabilidade pode fazer com que essas meninas acabem encarceradas.
Em Pushout, Morris demonstra que o contexto de negação sistemática de acesso à educação igualitário para brancos e negros existente nos EUA vem sendo construído há séculos. A autora conta que a escravidão contribuiu largamente para a construção de uma noção falaciosa de inferioridade intelectual negra: dentro do sistema escravocrata americano pessoas negras eram proibidas de ler e estudar, pois essas atividades eram vistas como um desafio à lógica opressora e controladora da época. Por meio dessa e de inúmeras outras medidas criadas ao longo da história para afastar pessoas negras dos ambientes acadêmicos, foi gerado um cenário em que prevalece a ideia de que mulheres negras devem se dedicar prioritariamente trabalhos domésticos e/ou braçais em lugar de alimentar seu desenvolvimento intelectual.
Assim, representações históricas das mulheres negras, somadas às representações contemporâneas (como memes, retratações negativas e estereotipadas na mídia e na cultura) fazem com que meninas negras sejam prejudicadas não só na sua vida escolar, mas também ao tentar construir seu futuro profissional e pessoal.
Os casos que Morris traz em seu livro são desoladores e, em consonância com os demais estudos mencionados aqui, revelam que episódios de abuso físico, moral e sexual são frequentes nas trajetórias escolares de meninas negras.
Como Crenshaw já havia apontado em sua pesquisa, “os estereótipos e os castigos com base em gênero acabam resultando em disciplina excessiva para as meninas negras. As jovens com quem falamos relatavam que muitos de seus professores as enxergavam negativamente como garotas ‘não confiáveis’, ou meninas que são ‘barulhentas’, ‘gueto’ e ‘ignorantes’”. Ainda segundo Crenshaw, essas meninas enfrentam um fardo interseccional clássico: “Muitos estudos nos dizem que a negritude é associada [no imaginário das pessoas] à agressão, e também sabemos que garotas e mulheres são excessivamente sancionadas por comportamentos que transgridam estereótipos de gênero”. Ou seja, essas duas dinâmicas juntas – uma percepção de agressividade codificada racialmente e a penalidade adicional por ser mulher – podem contribuir para a vulnerabilidade adicional que as meninas negras enfrentam em comparação com outras meninas.
E muitas vezes essas situações se apresentam cedíssimo, ainda no jardim de infância. Pushout traz casos em que crianças afro-americanas de 6 e 7 anos que estavam “se comportando mal” em sala de aula foram algemadas. A escritora Andrea Ritchie tem documentado violência contra mulheres negras no EUA há anos e o jornal The Guardian acaba de publicar um excerto do novo livro, “Invisible No More: Police Violence Against Black Women & Women of Color”. Nesse link do Guardian Ritchie menciona o caso da Jaisha Aikins, que em 2005, com apenas 5 anos de idade, foi algemada e presa na Flórida, por se “comportar mal” na sala de aula. As autoridades da escola e membros da polícia apontavam que o comportamento da criança apresentava risco para as outras pessoas. Um vídeo divulgado posteriormente mostra que a menina estava calma e não havia machucado ninguém.
Aqui no Brasil também não são raras situações de violência policial dentro das escolas. Victoria Lopes, aos 16 anos, foi espancada por policiais militares na frente da sua escola, na Zona Norte de São Paulo durante uma comemoração estudantil do último dia de aula. Em 2014, uma adolescente negra de 15 anos agredida por um PM em uma escola pública da zona leste de São Paulo e teve dois dentes quebrados.
A noção de que crianças negras são mais indisciplinadas, incorrigíveis e malcriadas gera uma distorção na forma como as pessoas respondem às ações dessas crianças. E essa distorção não necessariamente acontece porque essas pessoas são deliberadamente racistas, mas porque elas estão inseridas em um contexto no qual ideias racistas são propagadas.
Morris nos explica que em uma sociedade tão moldada pelas noções de gênero e raça, as pessoas vivem rodeadas por preconceitos e estereótipos relacionados a mulheres negras. Como resultado, temos reações e expectativas, conscientes ou não, que são baseadas em estereótipos de raça, gênero, sexualidade, e classe. Estando inseridos nesse contexto simultaneamente racista e misógino, educadores são impactados pela enorme carga de imagens negativas associadas às mulheres negras.
Quebrar o ciclo de violência contra mulheres negras é um processo que necessariamente passa pelo sistema de ensino. Ao serem influenciados por estereótipos, muitos educadores acabam despreparados e desinformados sobre os temas de gênero e relações raciais – o que os impede de exercer plenamente o papel que lhes é esperado. Isto é, o papel de contribuir positivamente para que a trajetória de estudantes negras seja bem sucedida. É preciso criar oportunidades de aprendizado e treinamento para educadores, a fim de garantir que eles compreendam e incluam uma perspectiva de gênero e levem em consideração questões raciais no seu trabalho.
REFERÊNCIAS
EPSTEIN, Rebeca. BLAKE, Jamila. GONZÁLEZ, Thalia. – Girlhood Interrupted: The Erasure of Black Girls’ Childhood
CRENSHAW, Kimberlé. OCEN, Priscilla. NANDA, Jyoti. – Black Girls Matter: Pushed Out, Overpoliced and Underprotected
MORRIS, Monique. Pushout: The Criminalization of Black Girls in Schools
RITCHIE, Andrea. “How black women’s bodies are violated as soon as they enter school”.
SOUZA, Ellen de Lima. “As crianças negras são mais punidas do que as brancas’, diz pedagoga”.
Imagem – Atlanta Black Star