Ilustração: Wellington Silva | Adaptação da obra ‘Monumento à voz de Anastácia (2019)’ por Yhuri Cruz
Se a minha voz incomoda, eu estou muito feliz. Quando falo incomodo, não pelo fato de fazer ofensas pessoais, mas por causar o desconforto de tensionar o status de “revolucionário” ou “desconstruidão” que algumas pessoas brancas sustentam discursivamente em um contexto público, porém que não é coerente com as suas práticas em contextos mais privados. Há muito tempo eu tenho feito isso via site Blogueiras Negras, uma experiência que também ajudou-me a compreender que eu tenho que ter responsabilidade pelo que eu escrevo, por isso, sempre que algum(a) leitor(a) dividi comigo as suas questões em relação ao que eu mobilizo na minha escrita, eu acolho da melhor forma possível, estabeleço diálogo e escuta, por mais difícil que seja sobre determinados assuntos ou de ter que lidar com violência dos egos narcísicos de uma branquitude, principalmente a acadêmica.
Eu sei que se eu fosse uma doutoranda branca em uma universidade onde reina o pacto a branquitude, eu seria ovacionada, ninguém se sentiria tão ferido, talvez até se predispusessem a pensar um pouco sobre a crítica que eu faço a esse espaço que tem sido violento comigo desde o primeiro momento, quando eu comecei a graduação. Aos longos desses anos, a minha escrita evoluiu, eu fui tomando mais consciência daquilo que eu escrevia, a escrita se tornava corpo-mente. Quando eu escrevo sinto que respiro. Respirar quando nos sufocam é difícil, ao invés de pés no meu pescoço, na academia, colocam sobre mim uma série de narrativas e exigências que coadunam colonialidade.
É muito difícil ter que lidar com a resposta violenta, que mobiliza instituições, que alguns leitores e leitoras me oferecem, sorridentes e com discursos dissimulados, como se eu tivesse nascido ontem e não tivesse ao menos estudado e escutado sobre a branquitude acadêmica. Ah, não posso dizer que não há exceções, sim, há! Aquelas exceções conformadas que não questionam os pares, mas que me tratam feito gente. Isso me bastar para existir aqui, não posso esquecer que quando eu me compreendi pesquisadora, eu me imaginei tendo “permissão” para pensar. Sinistro, não é? Será mesmo que todo mundo nessa sociedade racializada já se viu autoindagando se tinha, ou não, permissão para pensar?
Pensar angústia, tanto, faz brota na face um outro tipo de Atlântico, com uma dor mais moderna. A maioria dos espaços que participo, a presença da branquitude nem sempre é desconfortável, isso quando não surgem questões em que se observe manifestar o dispositivo de racialidade. Nesses espaços “mais possíveis” de coexistir, há uma cordialidade focada no que nos une, as pessoas escondem seus preconceitos. Quando os preconceitos saem, o silêncio impõe um esquecimento – para os brancos, não para mim – e aí prossigo a vida não querendo ser a pessoa que indagou e casou problema. Às vezes, eu só quero um grupo onde eu me sinta bem e esqueça por alguns minutos que eu sou uma mulher negra numa sociedade como a nossa. É um processo de autoalienação de certo modo violento, mas o que eu posso fazer? Nem sempre tenho forças para ser uma ativista que não cede ao cansaço.
E falando em cansaço, dói ter que explicar porque sentimos dor, porque algo nos ofende quando os sujeitos que se dizem ser pré-fabricados na empatia (que palavra grotesca) não consegue se ver um minuto com o nosso corpo preto. Insistem constantemente que compreende, porém, pouco fazem, só compreendem para serem aceitos no cenário de nossos afetos. Alguns de nós cedemos, porque também necessitamos ser amados e aceitos, porque estamos em constante convívio nos espaços que escolhemos estar, e que nem sempre nos olha em nossa plenitude de sujeito, já que nos aceitam, apenas, quando performamos objetos sem voz ou animais que reiteram as ideias hegemônicas. É triste e ao mesmo tempo interessante, a branquitude finge que nos aceita o tempo todo, e nós fingimos que acreditamos, enquanto tentamos não morrer. O silêncio mata, o preterimento mata, a bala mata, a invisibilidade mata, a branquitude racista mata. O racismo é um problema coletivo que impede o avanço das ciências humanas e a formação de pesquisadoras como eu.
Essa branquitude que lhes falo não consegue sobreviver a um segundo de uma conversa franca com ativistas negros(as). Inclusive, desafio-a a isso. Sempre me vi na necessidade ler e ler, para não manifestar questões rasas e para poder ter algum poder, no caso, o da argumentação. Ei, se pensaram que era o poder do deboche, por favor, respeitem-me (risos). Quem dera! Quando o branco é debochado, chama-o de irônico, pois a ironia tem lá as suas sofisticações. Na verdade, eu sou uma pessoa irônica, porém, nasci preta, então, eu aceitei o rótulo de debochada e a inferioridade que esse termo carrega e a falta de seriedade que lhe direciona. A ironia exige muita competência, o deboche só exige violência, eu ouvi isso em alguma sala universitária, só não me lembro em quais das universidades que eu estudei.
Um branco filósofo dinamarquês, o Kierkegaard, disse que a ironia é um meio de questionar a superficialidade da vida moderna e uma busca do significado existencial por meio de uma perspectiva crítica e autocrítica. Se a branquitude lesse e evitasse sustentar o pacto narcísico, sem o mínimo conhecimento das coisas, estariam me interpretando por meio do olhar desse filósofo e não por meio de estereótipos que me reduz a um animal sem alma, sem fé, sem racionalidade, um animal que não existe, mas que foi criado por meio do medo. E medo do quê?
A voz é um exercício de habilidade, porém nem todos nós somos audíveis. As relações de poder faz com que o que falamos seja ignorado, desconsiderado, mesmo que quem nos ouve estejam a nossa frente. Até nossos corpos, a dor e a tristeza que sentimos em alguns contextos, são colocados na esfera do inaudível. Enquanto isso, solicitam diálogos, enquanto não se predispõem a escuta, ao acolhimento e ao diálogo que vise escurecer todas as questões que nos separam no nosso dia a dia. O apartheid da voz na academia é um projeto de longa data, desde a sua fundação. Por mais que avancemos, com pesquisas e discursos, as práticas sociais dentro do espaço universitário ainda não assimilaram certa coerência. Por isso, nos deparamos com um mosaico de violências camufladas por regimentos, estatutos e até mesmo a moral familiar ou religiosa, em alguns casos.
Diante disso, também não entendo por que o meu sorriso surge. Sorrio porque ainda tenho uma boba esperança de que em algum lugar no espaço acadêmico pessoas se preocupem em combater e prevenir as violências simbólicas (ideia do Bourdieu, o branco francês, não me culpem disso). Escrever para mim é uma forma de dizer aquilo que forçadamente me proíbem de dizer, não porque é ausente de coerência ou que fira leis da constituição, e sim porque o que digo faz sentido e não conseguem contestar facilmente. Quando eu escrevo, eu sou uma espécie de cavalo de Tróia no seu imaginário, depois que eu entro, vocês tremem.
Escrevo porque ainda estou viva. Lidem com isso!
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