cor”Meu ponto é: não é que tudo é ruim, mas sim que tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então nós sempre temos algo a fazer. Então a minha posição leva não a uma apatia, mas a um hiper- e pessimista ativismo.”
Michel Foucault
Há algum tempo vem sendo veiculado um video da campanha Criança Esperança com o título „Ninguém nasce racista. Continue criança“, com este texto eu procurarei fazer uma pequena análise desse video partindo de uma perspectiva dos „Estudos de Branquitude Crítica“. Vou usar o texto de Ursula Wachendorfer „Weiße halten weiße Räume weiß“ (trad. „Brancos mantêm brancos os espaços brancos), onde a autora que é branca faz uma análise de como pessoas brancas mesmo insconcientemente colaboram para com a manutenção da branquitude dos espaços que ocupam. Essa manutenção da branquitude não se dá através de um posicionamento agressivo de negação do sujeito negro ou uma hiperafirmação do sujeito branco nesses espaços, mas sim com a (re)afirmação da neutralidade do sujeito branco. Voltemos ao video.
A trilha sonora do video dá a entender que o assunto a ser tocado deve causar emoção, ou ainda, desconforto. Vemos uma mulher negra sentada em uma sala vazia, um espelho onde sua imagem se reflete. Por trás do espelho vemos que há uma câmera filmando tudo, que porém não pode ser observada por quem entra na sala ocupada pela mulher negra. A primeira pergunta é: quem está por trás dessa câmera? Quem imaginamos ocupar um espaço, quando esse parece não ser ocupado ou demarcado? A psicóloga Grada Kilomba em seu livro „Plantation Memories“ (Memórias da Plantação), fala da existência de uma plateia branca invisível e a observar episódios racistas, mas que sabemos, apesar de sua invisibilidade, estar sempre presentes em tais situações. O sujeito negro sabe ser observado por ela continuamente, o que dificulta sua reação, já que essa platéia se encontra protegida pela „neutralidade/invisibilidade do sujeito branco“, que pode se dar ao luxo de não se identificar nem com o agressor, nem com o agredido.
Voltando ao video, a voz em off que narra o que virá a acontecer no video é a do ator Lázaro Ramos, que sabemos ser negro, aqui se sugere uma perspectiva negra, ou ainda, sugere-se a existência do equilíbrio de vozes nas cenas. Caso alguém tenha entendido aquele espaço como branco, o que ele realmente é, essa ilusão de multiplicidade de vozes dará a entender o contrário.
A voz em off do ator anuncia que foram chamadas crianças de diferentes idades, sem citar porém pertencimento racial ou étnico. A intenção do video começa a ser visível, ou melhor invisível, já que como a declaração que se segue deixa evidente, o video intenta tematizar uma situação muito comum no cotidiano de muitos „brasileiros“. Nós porém sabemos muito bem que essas situações são exclusividade de brasileiros muito específicos. Tanto negros quanto brancos sabem que os não nomeados brasileiros são as pessoas negras em nossa sociedade (indígenas não fazem parte da campanha „esperançosa“ de inclusão-exclusão dessa emissora. E atrapalharia em muito o pensamento dualista preto versus branco da campanha, ou seria melhor dizer preto versus vazio?).
Na sequência seguinte vemos um homem branco em pé, em posição que remete tanto à ideia de uma figura autoritária quanto a de uma figura imparcial, reforçadas através do papel mediador do ator. Nessa situação vemos como o sujeito branco na nossa sociedade acredita-se neutro, parece ignorar que „o branco também não é uma cor“, para citar novamente Grada Kilomba.
Um mediador negro nesse caso seria possível? Muito provavelmente não (na verdade, com toda certeza que não!). A partir do momento em que a branquitude detecta uma conscientização antirracista e de amor próprio na pessoa negra, ela passa a fantasiar e a temer uma solidarização entre negros, para não dizer melhor, uma „conspiração negra“, que viria a ameaçar os espaços exclusivamente brancos. Como isso, porém, deve ser negado (não há nada mais terrível para o racista brasileiro que admitir seu racismo), o discurso de neutralidade dos espaços brancos precisam ser mais e mais defendido.
Vemos, então, crianças negras diante de um „espelho figurado“, representado no video pela mulher negra, repetindo insultos, violências, com as quais são confrontadas diariamente. Esse é um momento muito importante no video onde o espaço vazio de que falei acima, ou seja, o espaço do agressor branco racista é ocupado por uma outra pessoa negra. Essa imagem resume muito a ideia da maioria dos brasileiros, de que é o sujeito negro o culpado pelas mazelas do racismo que sofre, ou de que a sua percepção de racismo advenha do seu sentimento de inferioridade.
Um dos comentários do sujeito branco, ao perceber o incômodo de uma das crianças negras é de que, se trata apenas de uma „cena“, ou seja, não é realidade. Só espero que a memória da emissora não seja fraca e que ela se lembre de que a „ficção é realidade“, quando for procurar o elenco da próxima novela… Ou será que vamos ver pessoas negras representando estereótipos racistas mais uma vez? Temo dar-me essa resposta…
Na segunda parte do video, após o sucesso de reavivar em crianças negras suas vivências traumáticas, o mediador branco coloca-se não mais fora do cenário, mas sim ao lado da mulher negra. A partir daqui o discurso de igualdade começa a se tornar mais explícito. Não falta, aliás, a afirmação de que negros também podem ser racistas, através da cena com um menino negro afirmando que ao proferir as palavras do texto ele estaria sendo „preconceituoso“. É interessante ver como um sujeito negro pode declarar-se preconceituoso, mas os sujeitos dos textos citados permanecem protegidos pela neutralidade branca da não-nomeação do sujeito agressor. Uma menina, que eu não classificaria como sendo de cor, fala mais descontraidamente e distanciadamante dos agressores citados, explicitando agora, a capacidade do sujeito branco em não relacionar sua imagem à do agressor racista. As crianças negras, no entanto, são colocados tanto de um lado quanto do outro, reafirmando que o racismo (apenas citado no título, mas jamais pronunciado no video) é um problema causado pela presença e existência do sujeito negro.
O mediador branco explica que as frases foram feitas por pessoas reais e pergunta às crianças se elas já ouviram algo assim, não vemos, porém, a menina branca responder a essa pergunta. E que nos leva, por outro lado, a fazer a seguinte pergunta: se a cor não importa, se somos todos iguais, por que somente sofrem pessoas negras esses ataques?
Já chegamos quase ao fim do video quando vem a mais absurda das perguntas feitas: „você acha que seria mais fácil dizer essa palavras pra mim, que sou branco?“ A criança dá a resposta esperada: „não, porque todos nós somos iguais“. Ah! A arte de receber as respostas que se quer ouvir está realmente em fazer as perguntas corretas e em fazê-las às pessoas corretas, a crianças, por exemplo, que dificilmente questionariam uma pergunta como essa ou dariam uma resposta à altura como: „não, não seria mais fácil, seria „apenas“ impossível.“ Já que vivemos em um contexto histórico no qual a cor da pele tem significados, sobre os quais se constroem relações de poder e que não desaparecem com a simples negação de suas existências.
O video da campanha Criança Esperança faz uma afirmação muito importante „ninguém nasce racista“. Isso é algo inegável. Mas não é essa a questão. A questão é que nascemos brancos e também nascemos pretos e para um número muito grande de pessoas brancas a existência do sujeito preto é sim um problema. Esse „problema“, como eles dão a entender, é combatido por brancos diariamente em espaços públicos. Espaços denominados de „todos“, ou seja, espaço neutro, mas que cabeças brancas e negras conscientizadas sabem muito bem que continuam sendo brancos. E cabeças brancas e negras conscientizadas sabem muito bem o quanto uma branquitude cruel e inconsciente de seu significado como a brasileira vai lutar com unhas, dentes e poder midiático para defender o status quo de uma falsa igualdade.
Nesse sentido, penso que o nosso pedido deve ser para que a branquitude brasileira deixe de agir como uma criança que não quer admitir erros e falhas, o que a tornará (já tornou), com certeza, em uma tirana. O nosso pedido deve ser: Cresça branquitude e deixe as crianças serem crianças, não importa a cor da pele delas. Talvez assim possamos ter esperança que nossas crianças negras cresçam sem a violência de ataques racistas, muitos deles (re)produzidos por crianças brancas, ao contrário do que o video quer sugerir.
Para terminar, eu ainda poderia falar de como crianças negras, nordestinas, ribeirinhas somente são lembradas quando a presença delas se faz necessária nesses espaços de „caridade branca“ e como isso também é uma estratégia de manutenção da ideia de que espaços de êxito são e devem permanecer exclusivamente brancos, mas isso já daria outro texto…
Textos de apoio:
Wachendorfer, Ursula. Weiße halten weiße Räume weiß. In: Mythen, Masken und Subjekte. Münster, Unrast Verlag.
Kilomba, Grada. Plantation Memories – Episodes of Everyday Racism. Münster, Unrast Verlag.
Imagem – reprodução web