“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.”
O trecho acima, da feminista negra norte-americana Bell Hooks, tem sido bastante difundido pelas mulheres negras nas redes sociais. Trazendo para o foco um debate não só doloroso como pouco falado, a falta de afeto na vida pessoal das mulheres negras. O principal recorte dado a esse tema é a dificuldade que encontramos para engatarmos relacionamentos sérios e duradouros. Mas não é só nesse aspecto que a mulher negra está só.
Nossa solidão com relação ao mundo se inicia na dificuldade de nossa compreensão enquanto mulher preta, pela própria construção do racismo brasileiro, mas não para aí. A mulher preta mesmo consciente de parte do preconceito que sofre possui uma grande dificuldade de depositar em sua semelhante sentimento de reciprocidade, compreensão, solidariedade e etc.
E é esse vazio que nos é tão caro. Para nós, mulheres pretas, a ausência de amor é tão profunda que não conseguimos enxergar nem na preta ao nosso lado a possibilidade de se fazer irmã.
As feministas brancas falam sobre sororidade e a necessidade das mulheres deixarem de competir entre si, deixarem de se olhar como rivais e passarem a se olhar como parceiras. É essa relação que para nós é um grande desafio, muitas pretas ao meu redor dizem que não existe sororidade para a mulher preta. Não existe porque, muitas vezes, para nós encontrar um relacionamento está acima da maior parte de nossos interesses, colocamos isso como uma prioridade inconsciente; nos agarramos às migalhas de amor que nos são oferecidas pelos homens brancos ou pretos. E a partir disso nossa relação com qualquer pessoa que ameace essa ‘conquista’ está profundamente abalada.
Muitas vezes olhamos pra outra preta no metrô, nas festas, no cabelereiro e a aparência da mulher já determina se iremos nos aproximar ou não, fazemos um julgamento de sua beleza, estabelecemos aí uma relação de competição bastante subjetiva. Muitas vezes deixamos de apoiar nossa irmã preta em determinada discussão, sem perceber que pra mulher preta levantar sua voz contra quem quer que seja e impor sua opinião é um dos maiores desafios e demonstração de força.
Infelizmente, cegadas pelo machismo e marcadas pelo racismo, deixamos de criar laços de solidariedade e fortalecê-los, por falta de reflexo, por falta de compreensão das dificuldades, porque a nós – bem como a todos os demais – está colocado que devemos antes de tudo nos preservar e seguir com a moral do individualismo e etc.
Mas ser preta, se reconhecer enquanto mulher preta, é antes de tudo um ato de coragem e força! E por isso, já nos reconhecemos umas nas outras sem mesmo saber o nome. Porque a cada mulher preta que se levanta e assume sua cor, temos nossa luta mais fortalecida. A cada mulher preta que diz que não aceitará mais o machismo e o racismo estamos um passo mais próxima de nos libertarmos. E a cada mulher preta que olha pra outra e entende sua dor, temos duas mulheres mais fortes. A irmandade surgida dessa relação transforma nosso cotidiano, nos faz compreender que o machismo que tenta nos dividir só merece de nós cada vez mais carinho e cuidado uma com a outra.
Superar a ausência de amor na vida da mulher preta não é encontrar um homem preto no qual ela possa se apoiar. É também, se assim for de seu interesse, mas não só. Superar essa ausência de amor é se amar, é amar a sua irmã, amar a nossa cor e nossa força. É se colocar em primeiro lugar, entendendo e reconhecendo em sua semelhante uma possibilidade de começar a se livrar de tantas inquietações que só nós entendemos. É se saber bonita ao olhar pra outro black, pra outros cachos. É se sentir bem com seu corpo ao olhar outros traços largos, bundas grandes. É saber que relacionamento nenhum vale a lágrima de outra mulher.
Quanto mais conheço mulheres pretas, mais percebo que há uma grande dificuldade de desenvolver uma relação de amizade profunda entre elas, aprendemos a nos fechar para nos preservar. E a cada vez mais percebo que rompida essa barreira uma relação que sororidade, afetividade ou palavra outra nenhuma consegue descrever.
Muitas vezes falhamos, muitas vezes nos falta o reflexo pra perceber que aquela irmãzinha não está sorrindo tanto, ou que ela precisa que alguém esteja do seu lado só pra dizer: ‘estou aqui!’ Muitas vezes nos falta dizer o quanto achamos nossa irmã preta linda e nos preocupamos com ela. Porque essa relação, essa solidariedade, essa irmandade muda nossa disposição de encarar a vida e nossa solidão se torna menor.
Por isso, se ainda é muito importante para os relacionamentos amorosos que ‘se beije sua preta em praça pública’, é muito importante que se abrace sua irmã. Nossos laços de solidariedade podem produzir um afeto que poucas vezes encontramos nesse mundo cão. E é disso que estou atrás…
Texto dedicado às minhas irmãs pretas do Coletivo Negro- USP, com quem todos os dias aprendo sobre ser mulher, preta e feminista.