Ninguém ouviu os gritos meio abafados vindos das imediações do riacho, de cócoras ela mordia um graveto e fazia forças, rezando para não desmaiar, não podia fraquejar agora. Assim, repetia os mesmos gestos que suas antepassadas, era desse modo que recebiam as novas vidas. Sem ajuda, sem testemunhas, apenas ela, a lua e sua dor. Pensou muito antes de chegar naquele ponto. Tentou tirar aquela criança de diversas formas: apertando e esmurrando a barriga, tomando chás quentes, caindo de propósito, tomando analgésicos com cachaça e até bebeu a primeira água fervida de feijão ─ diziam as mais velhas que era tiro e queda ─, mas o bebê guerreiro se agarrou à possibilidade de vida, e não cedeu. Ele lutou para viver! E ela refém da situação. Não tinha como ter aquela criança, morava apenas com a mãe, precisava dedicar total atenção a ela devido a doença, não podia pagar ninguém para ajudá-la, não trabalhava, vivam com o parco auxílio doença da mulher debilitada, era sozinha. O problema maior era explicar aquela gravidez. Como contar depois de tanto tempo que fora violentada pelo melhor amigo na volta da escola? Quem iria acreditar que o rapaz com quem era vista todos os dias entre a escola e o sítio lhe fizera mal? Quem acreditaria que ele fora capaz de arrastá-la para o meio do matagal e lhe machucar tanto? Ele era branco, filho do dono do sítio, era um bom rapaz, já ela… . Por medo das ameaças do rapaz, ela preferiu deixar a escola que a mãe sozinha. Como era magrinha e pequena para seus dezoito anos, conseguiu esconder a barriga com as roupas largas da mãe, a senhora muito debilitada parecia nunca ter percebido nada. Depois de muito sofrer tomou uma decisão, deixaria nascer e sumiria com aquela triste lembrança, ali naquele fim de mundo onde a casa vizinha estava a cem metros de distância, ninguém tomaria conhecimento.
Quando sentiu as primeiras dores bateu o desespero, mas já havia tomado algumas providências. Respirou fundo e buscou se controlar, precisava esperar anoitecer. As dores ainda estavam espaçadas quando a noite finalmente chegou. Com dificuldade preparou um chá para sua mãe e acrescentou uma generosa dose do calmante, o que garantiria mais conforto para a velha; em seguida pegou a bolsa preparada já há alguns dias, havia organizado um conteúdo com cobertor, almofadas, dois lençóis, um vestido e uma tesoura. As dores voltavam agora com mais força, sentiu que não poderia esperar mais, passou a alça da bolsa pelo pescoço, e apoiando-se nas muletas da mãe saiu pelos fundos da casa. Prendeu a porta por fora e rumou quintal abaixo em direção ao riacho. Ninguém ouviu os gritos meio abafados e os gemidos de dor e solidão. Após algum tempo, que lhe pareceram horas intermináveis, apenas a lua e as águas do rio ouviram um chorinho, quase um miado vindo de um ninho feito de matos, lençóis e almofadas. Exausta, ela sabia que teria que fazer alguns movimentos para terminar de expulsar a placenta, mais algumas horas se passou, o bebê havia alcançado seu seio sem que ela tivesse dado conta, instintivamente ela o embrulhou no cobertor e mãe e filho ficaram se aquecendo mutuamente. Seus planos havia escorrido água abaixo, pensara em jogar aquela criaturazinha no rio ou deixá-lo à sua margem para que fosse levado por algum faminto noturno para alimentar seus filhotes, mas ele era também um filhote, o seu filhote, que duelara com ela por nove meses. Num gesto preciso e tirando forças não soube de onde, ela sentou-se e cortou o cordão umbilical. Abraçou o filho e se preparou para mais uma batalha…
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