por Semayat Oliveira para Nós, mulheres da periferia
“Olha, existem algumas Luanas. Vou falar, talvez, de uma. Pode ser que algumas pessoas leiam e não concordem”, disse Roseli dos Reis ao iniciar a elaboração da sua resposta sobre os sonhos de Luana Barbosa dos Reis ou Luan Vicctor, como também se identificava em perfil de uma rede social. Antes da noite de dia 8 de abril, quando a violência policial brutalizou seu corpo e causou a interrupção da sua vida no dia 13 do mesmo mês, ainda pulsavam seus sonhos, planos e desejos.
No dia 3 de maio, terça-feira, o coletivo Soelas, organiza o ato “A carne mais marcada pelo sistema é a carne negra” às 17h30 no Masp – Museu de Arte de São Paulo. Leve seu instrumento para fazer barulho.
Nem sempre a família Barbosa dos Reis morou em Ribeirão Preto, no atual bairro Jardim Paiva II. A dona Eurípedes, 67, nasceu e morava em Goiás, na cidade de Santa Helena. Foi onde conheceu Luis, seu companheiro. Ele nasceu e saiu de Miguelópolis, interior de São Paulo, para trabalhar com colheita no Mato Grosso.
“Minha mãe e meu pai eram retirantes mesmo, viajavam por muitos lugares tentando encontrar um porto seguro”. Depois de casados, Luis voltou para sua cidade natal com Eurípedes. Lá, trabalhavam também com a colheita de laranja, algodão, corte de cana e, se fosse preciso, Eurípedes também atuava como empregada doméstica. A filha mais velha e os dois seguintes nasceram nessa região.
Depois, com a necessidade de ganhar mais e de se profissionalizar, houveram idas e vindas para Ribeirão Preto. Luis fez um curso de mestre de obras, ajudou na construção de um dos shoppings da cidade e foi para a capital de São Paulo para um emprego similar. Neste período, eles se comunicavam por cartas. E além das notícias, Luis enviava o dinheiro para sustentar a casa. Nessa época, Roseli tinha dois anos e Eurípedes aguardava Luana. Por ser uma gravidez delicada, precisou parar de trabalhar.
Passados três meses sem receber uma correspondência, a mãe enviou uma carta perguntando o que havia acontecido e avisando que precisava de dinheiro. Os irmãos que hospedaram Luis sentiram sua falta, mas imaginaram que ele teria se cansado de São Paulo e voltado pra casa sem avisar. Mas, com a chegada da carta, perceberam que algo estava errado e se mobilizaram em procurá-lo.
Foi então que descobriram que, aos 34 anos, ele havia sido baleado com três tiros e enterrado como indigente no cemitério de Perus, região noroeste da capital paulista. Sua morte foi registrada no dia 10 de novembro de 1981. Luana nasceu, prematuramente, 2 dias depois, no dia 12 de novembro de 1981. Sua mãe e os filhos souberam da perda 40 dias depois.
“Como minha mãe não tinha condições nenhuma, minha irmã foi pra creche com 1 mês e 20 dias de vida e minha mãe voltou a trabalhar de faxineira. Sempre soubemos da história do meu pai, mas pra mim era distante saber o que era “ter pai”, eu me sentia muitas vezes feliz, já que via a violência do que era “ter um pai” nas casas vizinhas. Mas a Luana não, ela nunca aceitou ter nascido depois da morte do nosso pai e não terem se conhecido”.
A partir de então, Eurípedes, que teve os pais desaparecidos depois do seu casamento, passou a ser a única responsável por tudo e por todos. “Crescemos em uma creche de freiras que acolhia mães solteiras e viúvas. Todas as amigas da minha mãe tinham mais ou menos a mesma situação que a dela: mulheres sozinhas que criavam seus filhos sozinhas e trabalham de faxineira. Foi assim que cresci, em um grupo de mulheres”.
Segundo Roseli, elas se ajudavam sempre. Em sua casa, pobreza alguma excluía a troca de favores, a oferta de abrigo e o empréstimo do sofá para acolher mulheres e seus filhos.“Muitas não tinham onde dormir e viviam no trabalho com os filhos. Como sempre moramos de aluguel, no fim de semana vinham pra casa da minha mãe”.
O ouvido de Eurípedes também era um antigo aliado para os inúmeros relatos de extrema violência que as amigas viviam. “Em casa tínhamos mais liberdade, a violência era entre nós. A gente ‘se pegava’ às vezes, brigava na rua. Isso por que minha mãe trabalhava em dois empregos, a irmã mais velha de todas trabalhava também e era a irmã com cincos anos a mais que eu que cuidava da gente, quando eu tinha sete ela tinha 12. Então era aquela situação”, lembra Roseli aos risos.
Moraram em um dos cortiços do bairro Campos Elísios, tradicional e com uma mescla de classes, incluindo médias, altas e baixas. Por volta de 1986, com a especulação imobiliária e as políticas de higienização, o cortiço foi vendido e seus moradores receberam uma quantia “X” para que se mudasse. No lugar foi construído um prédio. “É a descentralização dos pobres para os bairros periféricos”.
Foi quando nos mudamos para o bairro Ipiranga, onde vivi quase toda a minha vida. Como pagávamos aluguel e era uma região muito grande, nos mudamos diversas vezes. Em certos pontos ele era mais ou menos violento, mais ou menos pobre, mais ou menos negro”.
Com a chegada da adolescência a percepção do que era violento passou a ser maior. Em uma das décadas mais perigosas para todas as periferias de São Paulo, anos 90, as gangues, o tráfico, a livre exposição das armas, balas perdidas, conviver diariamente com mortes e estupros coletivos era comum. “Os meninos da minha sala foram desaparecendo um a um. E vivíamos com medo, sabíamos que quando alguém jurava de estuprar você, estuprava a família inteira, falo de relatos de estupros por mais de 15 caras”.
Luana era o contrário do medo. Ela enfrentou e se apropriou da violência como medida de proteção e de conquista do que não tinha em casa. Fez parte de gangues de mulheres, atuavam em roubar e este é o motivo de suas passagens pela polícia: roubo e porte de armas. Embora não concordasse com a escolha da irmã, Roseli diz que admirava como ela reagia quando tinham que passar ao lado de uma “banca” de caras. Enquanto ela queria atravessar a rua ou dar a volta no quarteirão, Luana dizia: “Não demonstra medo. Vem e não demonstra medo! Se eles podem, a gente também pode. Vamos bater de frente”.
“Então, tinha esse lado de ser uma organização de mulheres e de terem a coragem de enfrentar, mas também tinha todo o outro lado do crime. Foi na minha adolescência que ela ‘caiu’, com todas as amigas dela. Caíram juntas. Ela passou muito tempo da minha juventude detida na Febem (atual Fundação Casa), ela ficou dos 15 aos 17 anos”.
A verdade, segundo Roseli, é que as duas queriam a mesma coisa: sair do aluguel e da humilhação de ver o dono da casa pedir o imóvel e constranger tua mãe por ela não ter o aluguel pra dar no dia que ele quis ou por não ter o aumento que ele quer. “Ela sonhava com as coisas que eu sonhava também, mas queríamos de formas diferentes. Eu era a ‘nerd’, a certinha que estudava. Eu não a entendi e ela não me entendia, não conseguíamos dialogar nessa época.”
“Nessa fase das internações ela era transexual, sim. Ela se chamava de Luan, as mulheres com quem ela se relacionava também, ela era muito mais masculinizada na sua forma de pensar, de agir, de lidar. Mas a Luana dos últimos anos, depois das últimas internações, não era essa. Tanto que as namoradas dela, a última companheira, por exemplo, trata ela no feminino. As amigas todas da adolescência também. Parece que na internet estão fazendo um debate sobre o caso ser tratado como lesbofobia ou transfobia, ela teve fases transitórias. Ninguém tem uma identidade fixa e a da minha irmã também não era. É uma identidade móvel, está sempre se construindo. E os sonhos dela também.”
Nesta época sua mãe já havia se mudado para o bairro atual, localizado no Jardim Paiva II. Um bairro de COHAB, com habitações do programa Minha Casa, Minha Vida. Um bairro que até fica perto do centro, mas ainda assim é isolado, sendo preciso caminhar muito para ter um supermercado, por exemplo. “Do outro lado é a USP, a cidade universitária, somos divididos por uma linha de trem. Toda essa região era de barões de café. Você vê que lá eles têm a guarda escolar, as guaritas para proteger a casa deles. Mas a polícia passa aqui (do nosso lado) pra reprimir”.
Durante suas internações ela sempre trabalhou. Procurava até ficar em unidades mais distantes para que ela pudesse ter alguma atividade. Quase todos os cursos que tem no currículo foram feitos durante a detenção, sempre teve bom comportamento. Fez teatro, gostava muito de escrever poesias, contos, leu muita literatura periférica, gostava de filosofia e amava desenhar. Participou do projeto da criação de um livro com as outras internas, com foco em produção artística, e o seu desenho foi incluído e premiado na 3º posição entre todos os demais. “O Direito de Olhar – Publicar para Republicar” foi lançado em 2009.
Entre os sonhos que conseguiu concluir está o término do ensino médio, tirar a carta de motorista de carro e viajar de avião. No seu último emprego, em um dos buffet mais caros do Brasil, viajou muito para realizar eventos. Montava o bar, era garçom, era coqueteleira! Mas enfrentava casos de preconceitos muito frequentes no trabalho.
“Ela trabalhava o dia inteiro montando o bar e, dependendo da festa, quando chegada a noite, vinha um branquinho bonitinho pra fazer os coquetéis e a Luana ia fazer o quê? Catar copo!” Além de atingir sua autoestima, a violentava financeiramente, já que a diária do coqueteleiro era maior.
“Isso impedia a Luana de se relacionar em vários ambientes, principalmente no trabalho. Ela nunca se sentia enturmada: não fazia parte das turmas dos homens porque era mulher e não fazia parte da turma das mulheres porque é ‘sapatão’, como ela dizia. Então ficava sozinha, em uma situação de isolamento. Ela reclamava até das meninas lésbicas do bairro, que são mais novas, nem sempre negras, nem sempre tão pobres quanto ela e que não olhavam na cara dela”, contou.
Por isso, ir embora era um desejo constante, não só do bairro, mas de Ribeirão Preto, que é uma cidade extremamente burguesa, branca e racista. “É uma cidade grande, onde se encontra de tudo, mas ao mesmo tempo existe uma mentalidade que perpetua que a dos barões do café. Entendeu?” Ela queria morar em São Paulo, sabendo que viveria cenários semelhantes, mas acreditava que na capital encontraria mais pessoas como ela, que viviam as mesmas situações e com quem poderia dialogar mais. Se sentir acolhida.
“É muito irônico, ela saiu da situação de isolamento depois de morta, precisou morrer pra encontrar essas pessoas”, diz Roseli em referência à proporção das manifestações em defesa da justiça para o seu caso.
E ainda na lista de sonhos que não foram realizados, está a Universidade. Ela vivia dizendo que não ia deixar Roseli ser a única da família a ter faculdade. “Ela me dizia que ia fazer a faculdade e eu dizia que ia mesmo!”Uma das últimas perguntas que ela fez a Roseli foi: “o quê é ideologia?”. Luana contou que suas amigas diziam que ela era muito idealista. “No velório mesmo algumas vieram me falar que ela não era ‘favela, não’, que ela era intelectual, que falava bonito”.
Outro plano, que também envolvia morar sozinha, era ter mais independência e se reconciliar cada vez mais como mãe. Pelo tempo que ficou ausente e depois de uma relação de não aceitação com a maternidade, nos últimos anos ela começou a criar outros laços com o filho e com a responsabilidade de ‘ser mãe’ e queria poder intensificá-los.
Solícita, adorava mexer com terra, mudar seu visual e ser a cabeleireira de quem quisesse. Lembrada pelos moradores como a pessoa que dava carona com a moto que ela comprou com o seu trabalho a qualquer hora. Era quem pintava a rua na época da Copa e quem aceitava o trabalho de pintar a casa de vizinhos. Ela, que a morte indignou educadoras que já lhe deram aula, por conhecerem sua extrema educação, sensibilidade e vontade de aprender. Luana ou Luan, que acompanhava de perto e dava todo o apoio a sua irmã mais velha, que hoje supera um câncer.
“Eu não acredito que foi a Luana!”, é a fala de muitas, de muitos. Ela, que resistiu e passou por todos os tipos de violência. Ela, que nasceu 2 dias após a morte do pai e morreu com a mesma idade: 34 anos. Sobre quem tirou a vida dele não sabem até hoje, mas a dela sim. E por intuição ou apenas pela obviedade do ciclo vicioso de violência que acomete famílias negras, ouviu-se familiares comentarem baixinho no velório: “Ela morreu igual ao pai”.
O natural seria que ela levasse o filho menor de idade à escola e fizesse o caminho de volta para a casa. Roseli estava na casa em que moravam juntas fazendo exercícios físicos com sua mãe. As duas conversavam sobre a ideia de reunir a família para um almoço de comemoração dos 68 anos que dona Eurípedes ainda irá completar.
O espaço entre o que pode se ser “paz” e o que pode não ser é tênue quando se tem uma família negra, principalmente se vivendo em território periférico. Como diz o poema de Marcelino Freire, “a paz é muito branca”. Em uma brusca transição do cotidiano ao caos, a vida e os sonhos foram brutalmente feridos por gritos, humilhação, golpes, tiros e a invasão, sem mandato e sem autorização, de policiais militares em um lar vivido e liderado por mulheres negras.
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Semayat Oliveira
Este texto foi reproduzido pelas Blogueiras Negras mediante prévia autorização do Nós, Mulheres da Periferia e sem qualquer alteração. Link para o post original: http://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/luana-ela-saiu-da-situacao-de-isolamento-depois-da-morte-diz-a-irma-roseli-dos-reis/
A imagem que ilustra o texto é de Carolina Teixeira.