É possível criar outros contornos para a memória? Assista o meu filme Deságue!
Falar de arquivos e memórias para população negra é algo complexo, pois, muito nos foi tirado e o acesso à produção de imagens nos foi negado durante muito tempo, fruto de dinâmicas coloniais que se atualizam na contemporaneidade em seus diversos tentáculos.
Entretanto, carregamos no corpo nosso território, saberes que nos acompanham na oralidade e nas vivências. Na tentativa de desenhar outros contornos para essa memória, que me foi arrancada, fabulo e borro fronteiras subjetivas em direção à imageação (soma da capacidade mental e ação para realizar algo) radical de mim. Através da minha prática artística questiono as narrativas vigentes, expondo suas camadas e fragilidades, experimentando outras formas de sentir e aprender com o mundo.
“Como o barro na tentativa de lembrar
modelo seres que sopram mistérios enquanto sonho”
Quando um parente se encanta, seus pertences e histórias caminham conosco ao longo da vida. Foi assim com a minha avó depois de sua partida. Com a gente ficou uma bola vermelha da árvore-de-natal, alguns botões de roupa e uma caixa com fotos. Alguns anos depois, durante a pandemia, reencontro essa caixa e me pergunto: quem eram aquelas pessoas, quais suas histórias? Depois de algumas conversas com a minha mãe, fico sabendo que parte da nossa família mora na Zona da Mata norte pernambucana, nas cidades de Paudalho, Tracunhaém e Nazaré da Mata.
Nesse momento, combino dois desejos, o primeiro de reencontrar esses parentes e o segundo de aprender mais sobre o barro. Afinal, Tracunhaém é conhecida no Brasil pela tradição com a cerâmica e por seus mestres e jovens artistas que dão continuidade a essa arte. Assim, começou uma viagem de volta para casa. Neste gesto de retorno, inverto os sentidos tradicionais de migração, saindo da região metropolitana, onde resido, para Zona da Mata pernambucana. Além de mim, minha mãe, que a mais de 40 anos não voltava em Tracunhaém, e minha irmã, que também estava indo pela primeira vez, embarcam comigo nessa travessia.
Sou uma multiartista de Pernambuco, conhecida como Vitória Vatroi, e desenvolvo meu processo através do constante exercício de (re)visitar o que foi historicamente dado como verdade. Investigo e experimento com meu corpo no mundo, visualidades, expressões pessoais e biográficas, manipulando materiais para construção das minhas fabulações críticas e memórias. Tenho como orientação os estudos afroreferenciados e experiências sensíveis no processo de expansão dos sentidos, combinando estratégias que começam no corpo e se condensam em formas multidisciplinares. Possibilito, assim, novas perspectivas de expressões do meu corpo, deixando-me fluir turva e para além do imaginário identitário de mulher negra.
Na encruzilhada são muitas as possibilidades, os caminhos e encontros. O projeto Encruza deu início ao meu processo de residência e formação em cerâmica na cidade de Tracunhaém em 2022. Ao residir na casa da minha tia durante os 2 meses do projeto, volto e mergulho em diversas vivências e encontros com mestres do barro e com a nova geração de artistas – que dão continuidade a essa arte pensando diferentes caminhos conceituais para suas obras.
A formação contou com o acompanhamento da mestra Eliete Alves, que ministrou as aulas de modelagem com torno, sendo ela a única mulher na cidade de Tracunhaém a modelar peças no torno. Também tive aulas de modelagem manual com o artista Val Andrade, que desenvolve um trabalho lindíssimo em esculturas, além de ter visitado ateliês de alguns mestres como Sussula, Valdik, Zuza e Maria Eugênia e o Quintal das Artes. Também conheci artistas da nova geração como Silvia Ribeiro, David da Silva, Déu, Sid Batera, Diego Raiz. As trocas foram potentes e me alimentaram com muito conhecimento sobre a cerâmica, as dinâmicas políticas e culturais da cidade, as histórias da Serra de Trapuá, a vida e tantas outras coisas.
“o que é essa memória que trago em mim?
meu corpo abriga memórias
que não posso esquecer.
uma memória que não é só minha.
um dia desses, tentei lembrar
e não consegui.
não há palavra que dê conta de lembrar”
Ainda posso sentir o cheiro de peixe frito enquanto caminhava nas ruas de Tracunhaém; o gosto da azeitona roxa tirada do pé de árvore da vizinha; o sabor do sacolé de manga que minha tia faz; e o furo no dedo da agulha enquanto costurava uma gola de caboclo com meu tio nezinho enquanto dávamos risadas juntos. Nesse gesto de retorno, percebo que vou compondo minhas memórias no corpo, vivendo e sentindo. Lembro de ser tomada por muita felicidade ao saber que meus parentes fundaram o Maracatu Rural Pavão Dourado de Tracunhaém, que vários deles ainda trabalham e brincam no maracatu, símbolo de resistência em Pernambuco. Os parentes são responsáveis pelas feituras das vestimentas, como a gola de caboclo, a guiada, o vestido da rainha, entre outras.
Assim, vou desenhando outros contornos para a memória. As vivências e encontros vão costurando o projeto seguinte, Deságue, um filme roteirizado, dirigido e performado por mim. O filme nasce de imagens e ações que sonhei enquanto residi em Tracunhaém em 2022. Funde e ficcionaliza tempos, paisagens e memórias minhas e da minha ancestralidade, a partir dos fragmentos deixados em uma caixa de memórias da minha avó e do registro da performance, na Serra de Trapuá.
A serra, organismo que resiste à predação colonial canavieira, é protegida por guerreiros que habitam e se alimentam do barro. Nas veias/raízes da Serra, corre vida e seres em estado de iminência pela retomada. Há muito tempo venho sonhando com esses seres que se materializam na modelagem do barro e, após o fogo, irão atravessar o tempo como cerâmica. A trilha Cazumbá, música presente no mais recente disco “Sankofa” do pianista Amaro Freitas, abraça o filme e cria uma atmosfera única.
O evento online de estreia do Deságue acontecerá no meu Instagram no próximo dia 7 de fevereiro, às 20h, e o filme poderá ser assistido no meu canal no YouTube neste mesmo dia. Junto a esse lançamento, irei apresentar a Mawú, meu novo estúdio de cerâmica onde passarei a desenvolver minha prática com o barro, realizar pesquisas e imersões e irei lançar minha primeira coleção de utilitários. Acompanhe tudo pelo @vitoria_vatroi no Instagram e participe comigo deste lançamento.
Sobre Vitória Vatroi
Com 10 anos de atuação, Vitória Vatroi é uma artista visual pernambucana que atua de forma multidisciplinar e independente. Como integrante dos Coletivos CARNI (Coletivo de Arte Negra e Indígena) e Trovoa/PE, atua constantemente no campo da pesquisa, da performance, da direção de arte, do cinema e do design. Vatroi desenvolve sua produção através do constante exercício de (re)visitar o que foi historicamente dado como verdade para a população negra e utiliza multiplataformas para desenvolver e comunicar seus processos!