Ela pode ser combustível para a insurgência, de uma maneira que teorias feministas não poderiam explicar. De xoxadas e bailes a pilhérias, há muitas formas de expressar entojo pelo racismo – e transformar o silêncio em linguagem e ação
texto publicado na coluna Baderna Feminista
O mês de julho acabou e me vi sentada em frente ao mar de Olinda conversando com Audre Lorde em “Os usos da raiva: mulheres respondendo ao racismo”. Quando conheci o feminismo negro, dizia “sou mais Lorde que hooks”, afinal o horizonte do amor é mais longínquo que o da raiva, ali, palpável.
Aproveitei o calor da batalha, o fogo que queima estátuas e florestas e a ansiedade do contexto pra conversar não só com Lorde, mas com Sarah, Charô, com Marília, com hooks, com Gisella, com Vivi, com Rosane e com Daza, com Sheila, e outras mulheres negras sobre os usos da raiva e do amor y suas consequências para nossas vidas.
Neste fim de julho chuvoso no litoral do Nordeste, ousamos nos encontrar em diferentes lugares, nós, as mulheres negras, para conversar sobre nossas experiências. Encontros estes acontecidos em diferentes tempos e contextos, durante a pandemia de covid-19, entre mensagens de whatsapp, quartos de hospital, planejamentos, quartos de hotel e salas de zoom. Nós falamos de tantas coisas, mas em todas elas a raiva sempre se fez presente.
Quando reli Lorde, pensei: “como posso ainda desacreditar na potência da raiva que sentimos?” e mais “como ainda nos fazem menores porque a raiva transborda nossos corpos quando a injustiça ou a violência aparece?” Me perguntei isso, em cada vez que ouvi essas mulheres negras cansadas de suas dores, espumando pelo sofrimento que lhes causaram ou passadas pela falta de garantia dos seus direitos básicos.
Em uma delas, percebi como se pode usar a raiva na composição das frases para o enfrentamento da pandemia de covid-19 em sua comunidade: “e se seu nome não estiver na lista de doações da cesta? hein? você acha mesmo que não vai estar?” quando se referia a sua vizinha alegando haver preferências nas doações. Com outra, aprovei pela linguagem corporal como se mostram as insatisfações sobre o julgamento explícito acerca de suas capacidades: sobrancelha em riste, dedos levantados e o clássico: “queria discordar de você sobre um aspecto…”
Com a radicalidade de outra, acreditei no apoio mútuo do encontro entre outras não tão iguais assim: “eu não disputo nada! porque eu já nasci perdendo.” Essa expressão da raiva pelo cis-tema me fez entender como estão na vanguarda as mulheres negras mais vulneráveis desta sociedade. A partir da mais carinhosa, entendi a raiva da preocupação extrema, que de tanto cobrar presença, é capaz de expressar pelo whatsapp: “você não fala mais comigo, estou preocupada com você”. A raiva que mobiliza. Com outra, ainda ri com o pensamento intempestivo elaborado em resposta a uma mulher branca que falava sobre o aviso tardio sobre o seminário de raça e racismo: “claro, porque com vocês brancas, a gente precisa falar com 500 anos de antecedência, se não vocês escravizam nós”.
Em todas estas mulheres negras, encontrei a resposta para o enfrentamento da violência racial de uma maneira tão criativa que nenhuma teoria feminista poderia explicar o que pode fazer a prática transformadora da raiva. Xoxadas, bailes, pilérias e tantas outras formas cadenciadas de expressar certo entojo pelo racismo, ou mesmo uma meia briga que denota preocupação com a outra são as mais variadas formas do uso da raiva e a transformação do silêncio como linguagem e ação.
Em muitos casos percebemos a deslegitimação da nossa expressão — seja ela falada, escrita ou corporeificada — pelo simples fato de que há uma marca forte do uso da raiva, seja no tom da nossa voz, seja nas palavras usadas, seja no jeito em que o nosso corpo se expressa. Essa tática mais velha que andar pra frente é sintoma de uma coletividade que prefere apontar a forma como estamos denunciando o racismo mais do que o conteúdo. O resultado disso são mulheres negras revitimizadas pelo próprio vetor do racismo que a elas foi direcionado.
E como manter a coerência na resposta, quando o racista aponta: “mas você é contra violência porque então grita comigo?” Bingo para a falsa simetria!
O Julho das Pretas como momento simbólico nos traz a oportunidade do exercício da nossa raiva direcionada, alimentada com teoria e práticas feministas negras, adubada com nossas dores e enfrentamentos diários para confrontar não só indivíduos e suas ideias, mas todo o cis-tema e a ideologia da branquitude enquanto demarcadora dos signos e apontadora dos processos ditos violentos apenas em nós.
Na sua nona edição, o #JulhoDasPretas endereça sua raiva à construção política, ressaltando: Para o Brasil Genocida, Mulheres Negras apontam solução! Nossa expressão coletiva desenha um projeto de Brasil há muito desejado, apresentado na Marcha de Mulheres Negras de 2015 e consolidado nos nossos territórios.
Continuamos usando a raiva para nos fazermos entender. Diante de tanta falta de educação, de tanto retrocesso, de burrices cistêmicas e de tanta intencionalidade de morte, as mulheres negras no Nordeste e no Brasil, insistem na conversa dura, mas elucidativa, para garantir uma transformação a partir do combate ao racismo. Afinal, mais violento que ele só mesmo a possibilidade de se pensar isento a sua prática.