Do ‘cor de pele’ ao ‘nude’ (ou o mundo que queremos ser)

Todos nós, em algum momento do jardim de infância, aprendemos que, para colorir um desenho de uma pessoa, usa-se o lápis cor-de-pele, o ilustríssimo. Alguma coisa entre rosa e laranja, ou salmão, ou bege, ou creme, ou tudo isso ao mesmo tempo, que seria o tom perfeito para pintar bochechas, pernas e barriga, afinal, é a cor que representa a pele das pessoas.

Mas, de quais pessoas? Aqui, no nosso país (aliás, aqui, nos trópicos), esse cor-de-pele deve representar menos de 10% da população. Isso porque, de acordo com o último censo de IBGE, de 2010, 51% da população do país é preta ou parda. Vale ressaltar que essa porcentagem se dá por autodeclaração. Como muita gente com sangue negro em algum lugar da sua ascendência costuma se achar muito branco, se formos acompanhar a genealogia, geral é afrodescendente.

Quem não é negro, pode ser asiático, indígena, ibérico ou, no mínimo, ter a pele queimada de sol, já que, no Brasil, estamos no verão o ano inteiro.

Nesse caso, sobra quem para pintar com o lápis cor-de-pele?

Daí que, numa dessas altas cúpulas da moda, onde meia dúzia de pessoas iluminadas decidem o que vamos comprar na feirinha do Brás – como bem explicou Miranda Priestly, em O Diabo Veste Prada, sobre o casaco azul cerúleo de sua assistente, Andy – criaram o termo nude. Nude é uma corzinha meio rosa, meio bege, meio salmão, meio laranja, meio creme, que, quando usada, sugere a nudez, já que a cor do tecido ou da maquiagem ou do calçado imita a cor da pele. Mas, cor da pele de quem?

Com o cor-de-pele, sugerimos às crianças, desde cedo, qual a cor certa para a pele das pessoas. Azar o delas se não forem rosadinhas. Pelo menos, assim, já começam desde a creche a entender o seu lugar. Aos adultos, apenas reforçamos as sutis marteladas racistas, daquelas que nos fazem nos apaixonar apenas por pessoas brancas ao longo da vida e crer que isso é, meramente, gosto pessoal. Que nos fazem criar artigos e listas como essa e chamá-las de negras mais gatas, enquanto que uma similar com mulheres brancas, fala apenas em mulheres bonitas.

Não ouso dizer que o lápis cor-de-pele é a causa de todo o racismo impregnado. Seria ingenuidade. Mas é mais uma das centenas de artimanhas ardilosas para fazer com que o branco seja sempre tão melhor, tão superior, tão ‘normal’, que sequer discutimos, sequer questionamos. Apenas reproduzimos caninamente como se aquilo estivesse ali desde sempre, e fosse sempre permanecer no mesmo lugar, sem escapatória.

A luta pela eliminação do racismo e todas as formas de opressão é lenta, diária, ostensiva, e se dá nos pequenos detalhes. Inseridos em contextos racistas, não há como estarmos isentos de cometê-lo. Mas o que diferencia a cada um de nós é estar alerta, reconhecer privilégios, olhar o outro com respeito, carinho, e tentar ensinar às nossas crianças como fugir dessas armadilhas, tão danosas, tão sutis e tão devastadoras. Se são elas as responsáveis pelo mundo que queremos ser daqui há alguns anos, é nossa responsabilidade mostrar onde falhamos e dar a elas condições de consertar nossos erros.

Ainda há tempo. Não é tarde demais!

 

13 comments
  1. Minha irmã (negra) começou com essa de querer chamar esse lápis de cor-de-pele.
    Eu logo mandei um “Esse lápis é rosa claro, não cor-de-pele. Porque se fosse cor de pele, seria pele de quem? Não é da sua, não é da minha, não é do papai, não é da mamãe. E nem das suas amigas que eu duvido que tenha alguém rosa na sua sala. Então, chame ele pelo nome certo.”
    Ela: “Mas as pessoas chamam asssim”.
    Eu: “Nem sempre as pessoas são inteligentes, meu bem. E a gente não precisa ser como elas”
    Desde então, sempre que ela soltava esse cor-de-pele, eu corrigia.

  2. Não, não é tarde demais, felizmente! Tanto que eu transformei essa “questão” em um projeto fotográfico que venho desenvolvendo já há alguns anos e que tem, entre as metas, oficinas para educadores. Para que eles, figuras essenciais nesse processo, ajudem que nos libertemos do nome desse lápis e de tudo o que ele repreenta. Hoje em dia, por força de muita briga com o fabricante, já se chama até rosa pálido, ou seja, pele de ninguém. Em breve espero ter o prazer de compartilhar os resultados com você, Zaíra. O primeiro, que foi o meu ponto de partida para enfrentar a questão é esse: meu filho, que é negro, sabe desde pequeno que é “marronzinho”. Eu, na idade dele, não sabia. Eu me autorepresentava com o lápis cor de pele de ninguém. Ou seja. Há tempo e trabalho! Abraço. Denise Camargo

  3. Nunca tinha parado pra pensar nisso até ler esse texto, mas quando criança eu pintava as pessoas de lápis marrom, todas iguais. Agora já sou mãe, meu filho pinta de verde, de azul, de vermelho, de “colorido” como diz ele. E quanto ao lápis “cor de pele”, ele sempre o chamou de “cor de burro quando foge”!!! kkkkkk

  4. Esse artigo me lembrou do programa Art Attack. Pouco via quando era criança, meu pai nem minha mãe possuíam TV à cabo, mas sempre que ia na casa de algum amigo ou parente, não perdia a oportunidade. Recentemente adicionaram no Netflix, e eu pude finalmente assistir a todos os episódios que disponibilizaram. Quando eu era pequena, não reparava nesses detalhes, e por ser branca e rosada, achava normal o termo “cor-de-pele”, pois era a cor da minha pele. Normal! Não tinha muitos amigos, mas conforme fui crescendo e tendo contato com outras pessoas, comecei a refletir e a “criticar” (ainda era pequena) a Faber Castell por usar o termo “cor-de-pele”. Porém, assistindo ao Art Attack agora, eu reparei que, mesmo não usando esse termo, eles só usam a cor “rosa pálido” para a pele dos personagens nos desenhos. O apresentador não pode criar nada original, tem que fazer o que vem da sede, mas faltou uma enorme reflexão quanto a isso, não somente sobre a pele, mas sobre tantos outros detalhes “americanos” que simplesmente não se encaixam aqui. Neve, esquilos, renas, ursos polares, a criança daqui cresce como americana e se desapega ao seu próprio país, ao ponto de nem sequer conhecer as riquezas deste. Se ela nem ao menos conhece, como poderá um dia, valorizar? Imagino também as crianças afro-descendentes que assistiam ao programa, como elas devem ter se sentido. Uma falta de vergonha e respeito por parte da Disney, que ninguém se deu ao trabalho de mudar.

  5. Este tema uma questão pertinente para quem tem ou quer ter filhos, na minha opinião, já no meu caso, que não quero tê-los não me diz muito mas temos que estar sim muito atentos para toda e qualquer manifestação de racismo e de preconceito, que em nosso país é muito bem” camuflado”.

  6. Faço pedagogia e temos matérias em relação como lidarmos como a diversidade em sala de aula. Algumas acadêmicas já dão aula e uma delas dividiu conosco uma experiência em relação a “lápis cor de pele”. Quando ela viu as crianças brigando para usar o lápis, ela aproveitou o tema para quebrar estes esterótipos. Hoje, os alunos não usam mais este termo, por compreenderem que existem vários tons de pele e que todas são muito bonitas, aliás. Trabalhar com este tema com as crianças, questões de gênero e etc desde cedo é uma forma de quebrar padrões estereotipados. Adorei o texto!

  7. Oi, eu sou a Karolina e tenho uma irmãzinha de 6 anos. Esses dias ela veio me perguntar o porque ela não era cor de pele! Na hora eu não entendi, ai depois ela veio com o lápis salmão na mão dizendo: Essa aqui é a cor de pele, e eu não sou dessa cor! Fiquei assustada, ai ela me explicou que as amiguinhas do colégio estavam “sacaneando” ela porque ela não tinha a pele clara, então não poderia pintar o auto-retrato de cor de pele.
    No começo fiquei sem saber o que fazer, quando a gente passa por algo do tipo dói, mas quando é alguém que a gente ama muito, a dor é muito maior. A única coisa que me veio em mente foi pegar o lápis marrom e mostrar pra ela, e de um jeitinho bem sutil expliquei que não é o lápis que faz a cor da nossa pele, e sim nós que fazemos a cor do lápis, então ela poderia pintar o desenho dela de marrom.
    Por mais incrível que pareça, a guria saiu super feliz dizendo: Que legal, a minha cor é mais colorida que a delas!!!
    Depois que ela saiu eu chorei muito, não queria que minha irmã passasse por essas coisas, mas a vida é assim, as pessoas vão tentar coloca-la para baixo, e eu tenho que ser forte para coloca-la sempre para cima.
    Adorei o artigo, parabéns Beijos! ;*

    1. Também chorei aqui lendo. Obrigada, seu comentário reforçou o que o texto disse; francamente eu não tinha enxergado a extensão do problema apenas lendo o texto. Ler sobre o que aconteceu com sua irmã faz-nos lembrar nossa infância. Estamos no mundo, somos gente como todos, mas o mundo de maneiras sutis e explícitas nos exclui e nos ensina que estamos errados, inadequados, que não somos bonitos.

  8. Olá, meu nome é cristiane! Descobri o blog recentemente (não poderia ter sido antes?) e adorei o post! Quando tratei sobre o assunto no meu blog, não sabia que tinha tantas questões embutidas nisto. Quando chegou a era nude, achei tudo muito lindo, mas a definição do que era nude me incomodou! Se o conceito de tal cor é para ser o de cor de pele, pergunto: de qual pele estamos falando? Na verdade, são diversos tipos de nude! O fato é que o meu nude, não é o nude de muita gente, ainda mais no Brasil, local cuja diversidade nunca foi tão grande!

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