[…] Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.
Conceição Evaristo
Antes de iniciar este texto abri algumas páginas em meu computador em busca de algo que me trouxesse inspiração, esperava ler algo e pensar: é sobre isso que preciso escrever.
O fato é que eu sabia que aquilo tudo não era necessário, era só olhar para a página em branco, colocar minhas mãos em cima deste teclado que elas viriam assim, facilmente sem qualquer esforço ou preocupação. Aí está exatamente o que eu quero escrever hoje. Quero escrever sobre escrever. Quero escrever sobre quando a gente tem aquela voz dizendo lá no fundo que hoje é o dia, que é preciso colocar para fora, no papel, mas, a gente inventa um monte de desculpas, o quarto que precisa de uma faxina, a marmita para o trabalho amanhã, o cansaço, etc.
Eu não consigo lembrar exatamente quando comecei a escrever, tenho diários desde meus 8 anos de idade, ao longo dos anos se tornou um hábito natural para mim. Mas, cresci e em meio adolescência parei de escrever porque achei que nada daquilo era importante e que eu não tinha nada de interessante a dizer. Depois, ensino médio, cursinho pré-vestibular, escolher um curso para faculdade, foram se os textos e poesias vieram as redações. Aos poucos perdi o hábito, já não era algo que me trazia tanto prazer, algo que me conectasse com os meus próprios sentimentos, uma materialização da minha forma de sentir e me enxergar no mundo.
Ao entrar na faculdade eu voltei a escrever, mas já não era mais a mesma pessoa que escrevia com tanto prazer em seus textos. De repente ao longo dos anos eu fui bombardeada com regras gramáticas, modelos de escrita acadêmica, as citações, regras da ABNT o famoso rigor acadêmico que não tinha haver com tudo que eu havia aprendido. Então, era como se eu tivesse jogado a importância que a escrita tinha na minha vida no lixo, porque de certa forma eu entendi que se o texto em que eu estava escrevendo não tinha citações de intelectuais especializados no assunto, não era relevante. Se o texto não tinha palavras difíceis ou conceitos sociológicos, não era relevante. Se a cada parágrafo não tivesse cinco dados estatísticos, não era relevante.
De repente era como se nada do que eu tivesse para falar fosse bom o suficiente. De repente a minha forma de escrita não se encaixava em nada do que era exigido. Com a ajuda de bons professores e amigos ao longo do curso busquei me adaptar a tudo aquilo. Foram meses estudando, pesquisando, escrevendo deletando, escrevendo de novo. Voltei a escrever com bastante frequência, além dos artigos acadêmicos e projetos de pesquisas com toda essa carga de informação e exigências acabei me reconectando com aquele hábito de escrever por inspiração, para colocar para fora, no papel.
Nós mulheres pretas sabemos o quanto o ambiente acadêmico pode ser hostil, nos sentimos como um peixe fora d’água, uma sensação de não pertencimento daquele lugar. Estamos sendo testadas o tempo todo. Nossas capacidades intelectuais são sempre questionadas. É difícil viver em uma sociedade racista da qual não nos enxerga como seres pensantes.
Toda essa trajetória acarretou inúmeros problemas emocionais o mais importante emblemático foi a síndrome do complexo de inferioridade. Não é mito eu e você sabemos que é real. A gente de repente acredita que nós não somos bons, acreditamos que sempre tem algo que precisa ser melhorado. Eu estudei em péssimas escolas públicas praticamente a minha vida inteira, na faculdade achei que eu precisava preencher todos aqueles buracos deixados por um sistema de ensino falido em quatro anos. Eu não preciso dizer que a sensação era que eu sempre estivesse atrás. A busca por me equiparar aos meus colegas de turma era angustiante e cansativa.
Por fim, eu encarei as exigências, me adaptei a aquele sistema, projeto de iniciação científica, aquisição de um novo idioma, bons seminários. Mas, depois disso percebo o quanto todo esse processo é violento. Fazer uma faculdade foi incrível por muitas razões, aprendemos muitas coisas, o problema é que nem todas elas são boas.
Escrever hoje é mais do que ganhar notas ou provar algo para alguém, escrever é um ato político. Escrever é resistir em meio a essa sociedade que tenta nos calar a todo momento. Escrever sobre dor, sobre o amor, sobre auto estima. Escrever é buscar dar forma a nossa existência de resignificar o nosso lugar no mundo.
Escrevendo, resistindo e ocupando espaços, páginas, lugares, corpos. Minha escrita incorreta, os meus erros de português, será a minha forma de afronta ao seu academicismo burguês. Então, escrevo.