Quem nunca viu uma mulher andando na rua, falando sozinha, ameaçando e xingando quem passa por ela? É uma mendiga, já com certa idade, anda suja e maltrapilha. Todos têm medo dela, que ela os aborde. Que jogue uma pedra em um inimigo imaginário. Que seja você esse inimigo, ainda que de passagem. Esta é uma cena comum em diversas cidades brasileiras. E é um retrato do que vem acontecendo com as nossas mulheres. Por motivos muitos, que quero tocar a seguir, estamos todas sofrendo, em maior e menor grau, com distúrbios mentais (também de menor ou maior alcance) e, a frase que mais ouvimos é: “Depressão é doença de branco/rico. Pobre/negro não tem tempo para isso, tem que trabalhar.” E com essa atitude, vamos nos escondendo…
Me chamou a atenção, ultimamente, o caso de uma estudante de medicina dos EUA. Claramente com sinais de perturbações mentais, a jovem estava fazendo residência (o estágio profissional dos estudantes de medicina) e se apegou a um pastor. Nem este, nem família, nem a comunidade conseguiram compreender que o comportamento da jovem era obsessivo e necessitava de intervenção externa. Ver sobre o caso aqui. É um caso (a?) típico: mulher negra, de classe média-baixa, chegou aos trinta com uma pós-graduação em medicina, numa nação racista. Muito ela conquistou nesse curto tempo. Se dedicou aos estudos, à carreira, à igreja, à família. Mas essa dedicação toda, ao invés de trazer algum alento, vem com uma cobrança: quem chega onde ela chegou, tem que ser uma rocha.
*Eu acredito que somos quem a gente escolhe ser. Ninguém vai vir e te salvar. Você tem de salvar a você mesma. Ninguém vai te dar nada de graça, você vai ter de sair e ir à luta Ninguém sabe o que você quer, exceto você mesma e ninguém vai se arrepender mais que você mesma se você não fizer nada por você. Então não desista dos seus sonhos.
O dever da mulher negra, na sociedade atual, dentro e fora de ambientes negros, é o dever de ser forte. De lutar, sempre. De nunca abaixar a cabeça, de nunca se deixar abalar. O que eu venho reivindicar neste texto, é o direito de pedir ajuda, quando o fardo for muito grande. Quando o corpo e a mente estiverem cansados de lutar. Ninguém nos diz que temos direito a fraquejar, a ter medo. Faço uma alegoria agora, a algo que me marcou a vida toda. Minha mãe e suas irmãs sempre contam a história de uma vizinha, mais pobre que elas e de tom de pele mais escuro, que uma vez chegou a casa delas sangrando e com os olhos inchados. As “amigas” haviam dito que se ela colocasse água sanitária nos olhos, estes clareariam. Mas como o resultado foi a queimadura, ela começou a esfregar palha de aço no rosto, para ver se conseguia, ao menos, se livrar da cor de sujeira do rosto e dos braços.
Quantas de nós não teve vontade de esfregar palha de aço para ver se conseguia, com capricho, se arear também e clarear a pele, finalmente? E quando essa vontade ultrapassa as forças e começa a atrapalhar o cotidiano, a convivência com as outras pessoas, ninguém enxerga, ou quer enxergar. Há a vergonha de sofrer, a vergonha de admitir que sofre. Não há, no Brasil, estudo que mostre a taxa de suicídio entre jovens (nem da população em geral, segundo uma pesquisa rápida feita por mim), menos ainda entre negros, mas se sabe que é a 3ª causa de morte na juventude. Há um texto aqui no blog sobre o Banzo e a banalização da depressão dos escravos no Brasil.
O que eu vejo é que ainda não conseguimos nos libertar dessa ideia de tristeza, saudade de casa, de que “vai passar”. Nem da ideia de que somos as mulas do mundo, que somos eternamente Tias Nastácias e que nosso papel é o do trabalho, sempre. É preciso coragem sim para ser mulher negra nesse mundo, mas é preciso ainda mais coragem para parar e dizer que precisa de ajuda. Que precisa de um tempo para si. Que antes de tentar carregar o mundo nas costas, precisa-se estar bem consigo mesmo. Esse texto é, antes de tudo, um desabafo.
8 comments
Mábia, lembrei de você, acho que pode te interessar:http://www.iasbflc.org/old/nobles.htm. bj
Interessantíssimo, Juliana! Obrigada!
Oi Mabia, ótimo seu texto.
Eu sou estudante de Psicologia em uma federal do sul do país, sou negra e tenho me deparado com muitas questões que me inquietam e muitas vezes assustam.
Infelizmente em muitos cursos de psicologia não são considerados o impacto da questão racial na constituição do sujeito, e muito menos nas consequências deste na saúde psíquica do indivíduo.
É comum aqui na minha universidade falarmos pouco nesse assunto, e muitos colegas preferem nem falar sobre questões étnico-raciais por sentirem que se não são negros não precisam falar disso. Eles desconhecem e ignoram que profissionalmente não poderão fazer distinção no momento de um atendimento, por exemplo, e que a formação de psicóloga deve ser plural e conseguir abarcar todos os tipos de discussões.
Eu sinto e espero confiante que com as cotas vários [email protected] entrem nas universidades e em cursos como os de Psicologia, que é ainda um curso muito elitista. e possa agir diferente diante de problemáticas como essa.
Eu pelo menos estou fazendo esse movimento, inspirada em outras que vieram antes de mim na intenção de trazer à tona essas questões e olhar com mais carinho e cuidado para o nosso povo.
Seu texto é extremamente providencial. Obriga-me a pensar no significado da loucura. Em como devo encará-la, se como doença ou libertação. Alguma mulheres negras estão se livrando do fardo de serem o que não para encontrar uma outra existência.
Perto de minha casa tem uma assim. Ela circula pelas ruas, suja, falando sozinha, pés descalços, cabeça raspada, olhos avermelhados e vidrados. Outro dia, ela estava dormindo num banco de ônibus toda suja de menstruação. O motorista de ônibus(negro como eu) que passava pelo local e precisou parar o veículo para eu descer, em frente ao banco, olhou enojado. Senti um certo incomodo. Por mim, pela moça e pelo motorista. Eu e o motorista somos vitimas da não aceitação da loucura. Somos integrantes da sociedade hipócrita, na qual a lucidez é uma exigência para aceitação. O medo da exclusão, nos força a sermos a parecer sadios mentalmente.
Quando vejo esta moça, ela parece ser jovem, sinto um pouco de receio. Seus modos são bravios. Ela tem medo de mim e eu dela. O medo nos iguala mais que nossa identidade racial. Nunca entendi bem a loucura. Comecei a entende-la depois de ler algumas coisas do filósofo Michel Foucault. Os chamados loucos são pessoas sem compromisso com o estabelecido, convivem a seu modo com a negação dele, por isto incomodam. O preço a pagar pela descoberta é alto. É o isolamento, a incompreensão dos ditos “normais”, mas que na verdade são mais psicologicamente desajustados dos que perambulam pelas ruas, indiferentes a toda sorte de intempéries. Salvos pela falta de crenças e princípios falidos. Seu estado de espirito os mantêm vivos. A loucura é um pressuposto humano do que todos deveriam experimentar para libertar seus demônios.
Amém.
Oi Mábia,
Esta é uma questão que vem há muito tempo me tocando, no trabalho com a saúde mental e a formação na área psi, e devido a diversos laços pessoais e afetivos. A construção da doença mental é uma forma de exclusão muito clara, e obviamente que o grupo que atinge com mais força é o de mulheres negras. observamos facilmente, tanto nas ruas, quanto na violenta reclusão manicomial (inclusive infantil) que é um modo contundente de exclusão racial.
Por outro lado, no atendimento clínico individual da classe média por exemplo, muitos poucos são os profissionais da área psi preparados para lidar com estas questões que trouxeste e outras tantas (até porque a maioria é de brancos ainda), o problema sempre é do paciente, mania de perseguição, interpretação pessoal de mundo, nunca um problema real e objetivo de perseguição racial que ele tenha sofrido (por exemplo).
Num racismo cruel como o brasileiro fico sempre refletindo o quanto a perseguição de origem racista, disfarçada de uma certa dose de ‘somos todos iguais, imagina se estou te tratando diferente’ não gera uma constante instabilidade emocional, entre a sensação clara de constrangimento e perseguição, e o ocultamento destas atitudes por parte do perseguidor, que leva sempre a algo do tipo ‘será que eu estou ficando louca?’. Enfim, muitas e duras questões. Teu texto é lindo, obrigada por ele!
Pois é, Juliana. É uma coisa que tenho me perguntado, também. Eu tenho procurado psicólogos para me atender e esbarro nessa dificuldade. Da última vez a menina (era bem novinha a psi) ficou chocada com as coisas que eu ia contando e não fazia muita ideia do que dizer.
Acho que vou procurar entre estudantes de psicologia e profissionais alguém que queira falar sobre o assunto.
Ai, Mabia!
Suas palavras me tocam de uma maneira, estou passando por isso, mas com ajuda profissional. O peso da responsabilidade de ter que honrar todos os nossos ancestrais é demais às vezes. Depois de mais de trinta anos eu resolvi, parar para começar a fazer o que eu quero, o que eu preciso. Obrigada pelo seu texto! <3
Eu que agradeço pelo comentário, Aline! Escrevi sobre mim, mas sei que falo de muitas. 🙂