O momento é de retrocesso, perda de direitos e banalização de conquistas… É das margens que eu escrevo.
Recentemente me deparei nas redes sociais com uma publicação de uma matéria acerca do feminismo negro, que exaltava o direito de mulheres negras à fala e ao protagonismo. Ficaria bastante satisfeita com o fato de estar vendo mais uma consideração sobre o tema, isso se a fala não tivesse partido de uma mulher que na verdade é branca.
Mesmo com os intrínsecos privilégios contidos em sua corporeidade branca a mesma se apresenta como autora e feminista negra. Em sua fala, reivindica o direito a fala e o protagonismo de mulheres negras. Reivindicação justa, porém, neste caso, meramente retórica, além de irônica.
Na matéria em que a protagonista fala, sua imagem não aparece (por motivos que considero óbvios) sendo esta substituída por um desenho de uma mulher negra. Algo bastante sugestivo!
Não consideraria algo tão sério se verificasse que esse fosse um caso isolado e não tão recorrente em nosso contexto atual das lutas negras no Brasil.
Ao ler o conteúdo da publicação simplesmente abandonei tudo o que estava fazendo para revisitar Stive Biko, desta vez, sua obra intitulada “Escrevo o que quero” de 1978 a qual o autor e ativista apresentava certas inquietações acerca do rumo que tomava a luta contra o Aparthaid na África do sul.
No capítulo “Alma negra em pele branca?” as principais questões de Biko giram em torno dos brancos liberais ou de esquerda que, com discurso de complacência acabaram assumindo a direção das organizações negras se tornando guardiões da população negra impedida de se autogerir e decidir sobre andamento de suas lutas e de suas vidas. Biko questionava o modelo de integração proposto em seu país que, segundo ele, se fazia “em via de mão única: a qual os brancos são os únicos a falar, cabendo aos negros escutar”. (BIKO, p.33)
Nesse sentido, apesar da distância espacial e temporal entre nós e a escrita de Biko, sua fala se comunica muito com o momento atual de nossas lutas e o também preocupante rumo que estas têm tomado. Refiro-me ao contexto de rearticulação do poder branco em uma nova estética de dominação em forma de retórica antirracista: a afro-conveniência.
Esse é o contexto que se enquadra o caso de nossa porta-voz branca que se encena como negra ao mesmo tempo que defende a propriedade de mulheres negras sobre suas palavras e no exercício de camuflação de sua branquitude se utiliza de seus privilégios para se tornar ‘a dona da fala de mulheres negras’ e ‘em nome de um feminismo negro elaborado justamente para promover o contrário’.
Fatos como estes têm sido cada vez mais comuns em esferas de militância, e o pior, a maioria de nós têm assistido a tudo bestializadas, algumas, em estado de conformação e outras de impotência.
Do mesmo modo que Biko tinha que conviver com os brancos liberais e esquerdistas, formulando o discurso em que alegavam “sentir a opressão do aparthaid com a mesma intensidade dos negros”, também estamos sendo obrigadas(os) a conviver com “brancos de alma negra” dentro de uma pele branca e privilegiada dizendo o mesmo, e com argumentos ainda mais rebuscados.
Assim como no caso o qual mencionei é bastante recorrente em circunstâncias como estas nos depararmos com certas apelações: mas eu sou do candomblé! Eu danço jongo; sou capoeira; olha meu samba no pé!; olha a cor da minha consciência, é negra!; me posicionei assim; construí a minha identidade negra (esse último caso é um dos mais emblemáticos, que privilégio um indivíduo dispõe para, em plena sociedade dividida por tensões raciais, poder construir, ou melhor optar de qual lado deseja pertencer, existir?!).
Todos esses discursos e condutas das quais costumo chamar de performances, são utilizados como “prova de que são completamente identificados com os negros”.
Tais performances se dão com alguns acompanhamentos: turbantes pirotécnicos, linhas coloridas esgarranchadas no cabelo, roupas coloridas, carreiras de especialista em existência alheia com o respaldo de instituições de conhecimento que possuem em suas tradições seculares a legitimação do discurso branco.
Uma argumentação de Steve Biko que nos serve é a de que, “não importa o que o branco faça, a cor de sua pele não deixa com que ele escape de pertencer ao campo do opressor”. Dessa forma, a afro-conveniência é constituída por essa ambivalência do poder branco. Porém, tal relação de poder não é considerada quando, a partir de retóricas, sobretudo, academicistas, se sustenta esta ideia de negritude abstrata.
Em meio a tudo preocupantemente temos presenciado pessoas brancas ocupando espaços e esferas de conquista de poder que deveriam estar sendo ocupadas por pessoas negras. E o mais espantoso é que, grande parte destes lugares não são acessíveis a maioria de nós. Se utilizando de artimanhas pessoas têm construído ilustres carreiras e ainda mais privilégios em cima de nosso estado de segregação, das dores e dilemas que sentimos na pele.
É bom considerar também que o lugar do negro escolhido pelo branco para assumir a função de dirigente é sempre o festivo, o acadêmico, ou qualquer outro que lhe garanta o estrelato. Pensando em nossa personagem do começo da narrativa, certamente ela assim como outras em situação análoga não construiria sua identidade negra assumindo funções e papéis sociais subalternos os quais em suma maioria são exercidos por mulheres negras: empregada doméstica, babá, auxiliar de serviços gerais, vendedoras ambulantes, garis, catadoras, etc.
Não, seu feminismo “”””negro””” não chegaria a tanto! Pessoas brancas não foram ensinadas a abrir mão de privilégios, seja qual for o lugar o qual escolheram para se posicionar.
Nossos papéis que lhes interessam para apropriação são os de intelectuais, escritoras, porta-vozes do feminismo negro, ou qualquer outro que as rendam um lugar no topo o qual foram ensinadas a ocupar.
Além do livre trânsito, a força da hegemonia branca oferece a esses sujeitos o suporte para o poder da multiplicação, uma vez que, sempre trabalham no sentido de conceder a mesma legitimidade à outras(os) afro-convenientes e assim não se tornarem casos isolados vulneráveis a perder seus “méritos”.
Minha principal inquietação frente a tudo, e penso que a de muita gente da militância, é o comodismo e até mesmo a conivência de muitos irmãos e irmãs negras que, mesmo se colocando na luta antirracista permanecem em inércia ou até mesmo em alguns casos chegam a ajudar promover tais atitudes destas (es) algozes simpáticos(as).
Falando em simpatia, tomamos emprestada a análise de Frantz Fanon sobre o fascínio e o desejo do colonizado pelo colonizador, localizamos a questões que circulam entre nós, o fascínio por nossas(os) opressoras(os) a ponto de colocar nossas vidas, nossas negritudes e nossas lutas a serviço de sua hegemonia, sendo motivadas(os) pelas amizades, os romances, a vontade, distante segundo nossa mente mutilada, de estar ao lado ou ocupar o lugar da(o) branca(o).
Dessa forma, somos capazes de conviver em situação de subalternidade durante muito tempo ou durante toda a vida acreditando estarmos sendo protegidas(os) em vez de dominadas(os). Nosso condicionamento chega a ponto de nos fazer esquecer a cor de suas cútis por mais que estas estejam evidentes em nosso campo visual, uma claridade tão estridente que cega e ofusca.
E é nesse sintoma de busca pela proteção que permitimos aos opressores(as) que nos dirijam, falem por nós, avaliem o que é melhor para nós, conduzam nossas lutas e, de várias formas, nos silencie, possuindo o poder para nos conceder ou nos retirar a palavra, se valendo para isso da legitimidade que lhes demos ao conceder-lhes o título Negritude Honoris Causa.
Não é incomum nos encontrarmos na plateia apenas assistindo a elas (es) presidir nossas mesas e encenando falas que na verdade são nossas! Diante a essas situações nos restringimos a aplaudir a nossa própria ausência de representatividade.
A afeição que nos torna crentes no discurso desconstrucionista e emancipador desse(a) colonizador(a) dissimulado(a), nos induz a uma cegueira até mesmo diante de atitudes racistas que não deixam de vir dos (as) mesmos (as). E assim, afetivamente geridas(os) nem sequer percebermos o racismo contido também na própria atitude do(a) branco(a) em assumir nossa identidade e falar por nós. Ou seja, somos amorosamente neutralizadas(os) diante de sua hegemonia.
Esse envolvimento das afetividades fica perceptível em impulsos de algumas pessoas negras em se saltar para defender e proteger seus queridos(as) preceptoras(es), doa a quem doer.
Diante a atitudes de nos posicionarmos na tentativa de desconstruir esse tipo de conformismo, como faço ao escrever esse texto, é habitual que outras pessoas também negras se levantem em protesto movidas pela paixão que desenvolveram pelo(a) opressor(a) e nos ataquem apelando justamente para a esfera das emoções:
Acusam-nos de estarmos levando para o lado pessoal, de não gostar dessa ou daquela pessoa, de estar sendo levadas(os) por vaidade, de odiar pessoas brancas, de sermos radicais, etc.
Penso que esta seja a principal explicação para que tantas irmãs/irmãos que, mesmo partilhando dessa mesma postura não conformistas, se sintam coagidas(os) e reprimidas(os) em manifestar-se e denunciar esse estrangulamento de nossas lutas. Calam-se diante do receio de serem atacadas(os) e constrangidos(as) tanto pelos sujeitos dominantes cuja principal arma é sua hegemonia, quanto, e principalmente, pelo seu exército de bajuladoras(es) negras(os) formado por aqueles(as) que, infelizmente, ainda não aprenderam o caminho para a construção de uma autonomia.
Além dos(as) amansados(as) pelo sentimentalismo colonial, estamos falando também de negros(as) egocêntricos(as) que, envaidecidas(os) em estar ou almejar o lado do branco(a) em busca possíveis benefícios individuais que podem alcançar por meio dessa parceria, acabam sendo tão culpadas(os) quanto seus amigos(as) pelo nosso não desenvolvimento coletivo.
Todas essas situações fortalecem a rearticulação e manutenção do poder hegemônico, pois, é o meio pelo qual pessoas brancas em formato afro-convenientes têm encontrado legitimidade para hospedar a manutenção de seus privilégios cujo principal passaporte é a ‘brancura’ esta somada ao nosso consentimento para que se tornem nossas(es) tutoras(os) e não perder seu lugar de prestígio em meio a investida negra.
É tudo isso que sustenta atitudes ousadas por parte de mulheres brancas que, como vimos, roubam nossos direitos de fala se colocando em nosso lugar no protagonismo da fala em defesa do Feminismo Negro cuja formulação intenciona justamente a destituição da superioridade de seu feminino branco sobre nós.
As brancas de alma negra rearticulam seu domínio ao se tornarem DONAS DE NOSSAS PALAVRAS, QUE NOS ROUBAM O DIREITO À PRIMEIRA PESSOA, DO SINGULAR AO PLURAL.
Com essas considerações não pretendo de modo algum me posicionar contra a participação de mulheres ou homens brancos na luta antirracista, pois, acredito que não só um direito, o combate ao racismo é uma obrigação de todo cidadão e cidadã. Nem, tampouco me coloco contra círculos de carinho e amizade entre pessoas seja lá de quais grupos sociais sejam.
Entretanto, considero que o sintoma de superioridade do poder branco e da inferioridade negra introjetados em ambas as partes, não tem permitido ao grupo dominante uma tomada de consciência acerca da necessidade de abrir mão de seus privilégios, e a nós, de abrir mão da condição de dependência em relação a indivíduos brancas(os) e nos despirmos de uma vez por todas do estigma do Bom Selvagem.
Considero que o posicionamento contra a afro-conveniência significa se opor a estratificação da sociedade em “círculos estáticos” e cruéis, que torna pessoas negras eternas subalternas e submissas em relação às brancas. Significa também lutar por direito a autogestão e pela gerência das fronteiras de nossos aparthaids.
Além do mais, é a possibilidade de oferecer ao branco(a) uma reeducação que o permita rever e reconfigurar seus papéis para que busquem se deslocar de seus status de domínio em vez de tentar rearticulá-lo como tem ocorrido por meio das performances de afro-conveniência.
E cabe a nós, principalmente, mulheres negras, reagir ao sintomático sentimento de inferioridade, o desejo e a busca por proteção do(a) hegemônico(a) para assim construir nossa verdadeira autonomia e emancipação, isso significa, sobretudo, saber gerenciar o limite de separações entre nossas afeições e nossas lutas políticas.
Quem sabe, contudo, poderemos no futuro ao contrário de hoje, se utilizar do “carinho” para explicar às nossas amigas brancas que “tanto nos ama” a ponto de buscarem “se passar por nós” que, a primeira pessoa do feminismo negro não pertence ao domínio de suas falas!
“Sou contra a estratificação da sociedade em superior-inferior, branco-negro, que faz do branco um perpétuo professor e do negro um perpétuo aluno (e um mau aluno, além do mais). Sou contra a arrogância intelectual dos brancos que faz com que acreditem que a liderança branca é uma condição sine qua non neste país e que os brancos têm um mandato divino para imporem o seu ritmo ao progresso.”
Steve Biko
Agradecimentos:
À minha amiga e irmã de luta, a intelectual negra, Luciana Pereira de Sousa pela indicação de um dos livros e pelas conversas movidas por indignações conjuntas que geraram os insidies tão necessários a composição deste texto.
A todas as irmãs idealizadoras e moderadoras do Blogueiras Negras por mais essa oportunidade de publicação, e por atuarem no sentido de nos possibilitar o direito à voz através da escrita, para que aos pouquinhos possamos ir recuando nossos textos (e nossas vidas) das margens ao centro.
Referências Bibliográficas:
BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero. – São Paulo: editora Ática, 1990. Acessível em: https://pt.scribd.com/doc/236043744/Steve-Biko-Escrevo-o-que-eu-quero-pdf.
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. – Salvador: editora EDUFBA, 2008. Acessível em: http://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Frantz_Fanon_Pele_negra_mascaras_brancas.pdf.
Imagem destacada: Raquel Dolezal, mulher branca que durante muitos anos se caracterizou para sepassar por negra chegando a assumir o cargo de professora de estudos africanos Eastern Washington University. Outra vantagem tirada pela a impostora foi a apropriação de cargos de chefia em organizações de defesa dos direitos da população negra dos EUA.