escrevi esse texto em outubro de 2017, por causa de um outro texto. fiquei guardando ele alguns meses porque tô evitando textão desde 2009, quando escrevi uma crítica a uma letra de um grupo musical e a polarização das opiniões contra e a favor do meu texto transbordou numa avalanche de brigas cabulosa e numa acusação-blindagem de que eu tava tentando silenciar outras mulheres.
depois, ensaiei voltar a blogueragem com uma coluna de entrevistas aqui mesmo, nas blogueiras negras, e no começo foi fera mas depois fiquei de novo com receio de repetições, acabei mais envolvida com meu blog de poemas, deixei quéto, como se diz em brasília. acho que escrita é que nem chá, tem uma pra cada momento, pra cada febre, pra cada descanso.
escrever poesia freneticamente me alimenta e satisfaz muito. escrever uma tese de doutorado me satisfez também. publicar traduções me satisfaz também. escrever contos bissextos também é legal [y rendeu um selo e um zine lindos com a daisy serena]. escrevi um roteiro, foi maravilhoso o processo. tenho escrito romances (dois), y essa escrita tá me deleitando. mas escrever textão é respiradouro, minha gente. é um jeito de estar no mundo: que tem a ver com des-sufocamento, com pedagogia. então decidi voltar a escrever, depois do ocorrido com um texto pro qual fui contratada.
uma instituição X me chamou pra escrever um artigo pra um dossiê sobre literatura como solo fértil de imaginários, conectando a educação. o contrato me remuneraria em mil reais, isso mesmo, MIL REAIS, pelo texto.
fiquei muito motivada pela oferta de remuneração financeira [que julguei generosa] por um ofício que elaboro tão voluntária e às vezes desvalorizadamente. escrevi o texto contando de minhas experiências ledoras e relembrando como foi importante pra me enxergar como autora ter conhecido o trabalho de autoras negras como elisa lucinda, audre lorde, conceição evaristo. o texto ficou lindo, me permitiu relembrar de minha história lááá na infância como leitora-escritora, rememorar coisas que eu tinha deixado embaixo do pó que o presente deita no passado.
contei também do racismo como projeto epistemicida e das literaturas negras como quilombismo literário: “fazer parte de uma comunidade palavreira imaginada e imagética fértil, frutífera, afiada, futurista, que elabora uma outra pedagogia literária: literatura negra/lésbica afronta padrões representativos vigentes e oferece possibilidades novas, insurgentes. é quilombismo literário mesmo, dizendo ‘nunca precisamos dos textos da casa grande pra nos explicar, e cada vez mais escrevemos os nossos'”.
enviei o texto bem antes do prazo, porque detesto procrastinação, agradeci a oportunidade, assinei o contrato de pagamento, emiti nota fiscal, recebi o pagamento etc. quando penso que não chega um imeio do interlocutor entre escritorxs e editora:
“Oi Tatiana, tudo bem? Ontem tivemos uma reunião, seu artigo ficou ótimo. Obrigado novamente pela contribuição. Gostaria de saber a possibilidade de seu artigo assuma uma verve poética ou, que você produza um poema para publicarmos.
Esse pedido se dá por conta que publicaremos junto com outros artistas, escritores, músicos… enfim, em uma seção que chamamos de “xxxxx” [melhor não escrever aqui o nome do dossiê, que era o tema da publicação apresentado a mim no primeiro convite pra escrever, e que orientou minha escrita], será uma parte da publicação que queremos que a poética esteja mais presente. Qualquer dúvida, me escreva.”
sempre gentil, esse moço. eu não tinha nenhuma dúvida mas escrevi mesmo assim. dizendo:
“boa tarde, gente, fulano, tudo bem? […] não costumam sair bons poemas quando faço por encomenda, já tentei algumas vezes e o resultado me desagradou muito. e estou com o tempo me olhando de um jeito saturniano: esse bimestre agosto/setembro é cheio de atividades da visibilidade lésbica e do 28 de setembro. não rola sentar pra escrever mais, ou outra coisa. […] além disso (e talvez o mais importante) acho que o texto já tá bem poético – no sentido de subjetivo. espero que vocês possam usar ele mesmo, porque escrevi exclusivamente pra essa publicação e tendo em vista as duas pontas do tema do dossiê, “xxxxx”.
suponhamos que o nome/tema do dossiê fosse algo como “manifesto: contribuições pedagógicas da arte. perspectivas artísticas sobre o educar e o literário como fábrica de imaginários culturais”. aproximadamente, era isso. não transcrevi literalmente porque não quero ter problemas. & enfim enviei meu textinho maneiro sobre minha constituição enquanto autora negra ser fundamentada em outras escritas negras. etc.
e ok as semanas passaram. e de novo quando penso que não chega um imeio com um convite pra eu acessar as sugestões de revisão. pausa na máquina de textão pra essas duas imagens sobre palavras que valem mais do que mil palavras [no caso, do que as minhas palavras – quase duas mil – que valeram mil dinheiros antes de serem escritas]. só: rever as imagens com calma antes de continuar.
[inserir imagens: tns_palavrapreta01; tns_palavrapreta02, gracias]
como eu disse o moço da interlocução é um doce mesmo. ele não me repassou o recado com esse finalzinho aí, “escrever sobre é diferente de escrever com”, “aos poetas, a poesia”. mas a gentileza acabou nele. achei absurdo alguém me pedir um texto sobre um tema num formato específico (artigo, não poema), receber o texto, e dizer que acha que um poema escrito por mim daria mais “personalidade autoral à minha escrita” do que um artigo escrito por mim.
essas frases finais ficaram me martelando a cabeça… “escrever sobre é diferente de escrever com / aos poetas, a poesia”. a recusa da inteligibilidade ao meu texto. a compreensão dele como um texto absurdo que não é considerado teórico por não escrever teoria como se espera que teoria seja escrita. a lembrança de anos de acusações de parcialidade e panfletarismo na academia. talvez eu achava que depois de ter um título de doutora isso ia diminuir. aí lembrei que um pouco antes de defender a tese e uma pessoa de função relevante no processo disse que aquele texto “não era um texto acadêmico de doutorado”. e lembrei também de como a banca elogiou meu trabalho e um professor que eu sequer conhecia (indicado por essa pessoa da função-relevante, e hierarquicamente superior a mim) disse que fazia tempo que não lia um trabalho intelectual na academia, como era o meu.
agora isso. a pessoa me pede um texto no formato (“gênero”) X. eu envio. ela acha que eu devia ter enviado no Y, porque no X “não ficou claro”, “não falou sobre” apesar de ter falado com. mas, mesmo tendo “falado com” (palavras da editora), o fez de forma pouca, errada, inconveniente, porque não é uma escrita que não tem “personalidade autoral” suficiente.
lembrei também que não dá pra esquecer que o poder definidor de quem diz “isso é” ou “isso não é” teoria continua operando ao lado e em favor das hegemonias categorizantes de formas de pensar e expressar pensamento. categorizantes e excludentes. lembro de ter ficado com um pouco de receio de não receber pelo texto. mas pagaram, sim. só não publicaram. o que me deixou bem insatisfeita, y fez o aparente dinheirão que recebi pelo texto se tornar um tipo de migalha.
tem muitas coisas das quais não sei pensar, ou não quero, e nem consigo. isso às vezes me incomoda [“por que não consigo fazer um cálculo de profundidade sem precisar de lápis e papel?”, “por que não entendo direito como o parlamentarismo funciona?”, “o que é um cátion, mesmo?”, “como é a ordem S-V-O em mandarim?”], mas não me faz sentir incompetência – só o gosto da ausência. mas ouvir sobre o que eu pensei e escrevi desde minhas experiências formativas históricas e acadêmicas o equivalente a “não é pensamento/conteúdo suficiente, que tal transformar em poesia/forma?” me deu um nó na garganta, de onde saem essas palavras que não só não foram entendidas: foram consideradas incompetentes de significar e, portanto, fazer sentido.
fico me lembrando que “fazer sentido” é um acordo comunicacional, linguajeiro, não uma propriedade mágica dos textos. quem recebe tem que ter algum nível de empatia e disponibilidade de reconhecimento do que se apresenta. se não tem essa empatia, do lado de quem recebe, e alguns quesitos básicos de textualidade (especialmente coesão e coerência), a comunicabilidade quebra – matemática básica.
o que tensiona, complexifica, e torna assustador é pensar que esses filtros que dão a alguém o direito de entender algo como legítimo/inteligível ou não tem fundamentos epistemicidas construídos em cinco séculos de sistemático desentender determinadas expressividades. sim sim, acho que spivak já respondeu, x subalternx pode falar. mas nem sempre x opressorx quer/vai/pode ouvir. pensei no título pra esse texto lembrando de quando namorei um boy preto uns anos antes de me entender lésbica. um dia távamos numa galeria comercial no rio de janeiro num brechó, em copacabana. ele tava sentado numa escadinha conversando comigo. um cara preto de dreads vestindo preto (ele era anarcopunk). uma criança não-negra chegou perto da gente, ficou um tempo vendo nossa conversa, e perguntou pra mim, apontando pra ele: “ele fala?”. eu fiquei muito espantada e não consegui responder porque sequer achei que tinha entendido a pergunta dela, que emendou logo em seguida “e ele dança?”. é velho e democrático esse treino de não nos considerar como pessoas. mesmo falando, nos perguntam se sabemos falar. mas querem mesmo é saber se, meio circenses, sabemos dançar.
Imagem – Cobbing_- Whisper Piece 1969, Flashbak