O corpo da mulher negra está o tempo todo sendo negligenciando e não é só pelo Estado.
Desde o período colonial a sociedade naturaliza a ideia baseada em estereótipos racistas de que a mulher preta é forte e aguenta tudo, essa ideia ainda mora no imaginário social e as consequências disso na vida da mulher preta são inúmeras porquê a todo momento as pessoas ao enxergar em nós alguém forte que aguenta todos os dias diversas formas de opressão acabam colocando os problemas delas em nossas costas. Atitude que podemos ver em amigas/os, namoradas/os, professores/as, colegas de trabalho, patrões/as, filhos/as, e a lista continua.
Tal ideia racista atravessa nossos corpos de todas as maneiras e por muitas vezes nos vemos tendo que lidar com o problema dos outros além dos nossos. Seja na hora de dividiras sacolas de compras no mercado ou na hora de tomar uma anestesia no hospital o corpo da mulher negra está o tempo todo sendo negligenciando e não é só pelo Estado, ele não é o único nos deixando em último plano. Sempre é a nossa mão a primeira que soltam.
Eles que criaram e pesa aqui no nosso lombo. O racismo estrutural foi criado pelo homem branco e foi tão bem estruturado que não importa é sempre a gente mulher preta que acaba limpando o chão, se dando mais do que pode e se perdendo pra outras pessoas conseguirem se encontrar. Adoecer pelo peso que carrega é sempre o que acontece com toda mulher que traz em sua pele uma imagem de servente construída historicamente. Vejo repetidas vezes amigas se deixando ir por se doar demais em relacionamentos amorosos ou não.
É importante se priorizar quando se vive em sistema racista e sexista que te ataca o tempo todo institucionalmente ou não, isso quer dizer que também somos atingidas nas relações pessoais, e são em todas elas. bell hooks em Ensinando a Transgredir diz que numa relação de dominação e até mesmo exploração pode existir carinho. Então, dentro de qualquer relacionamento entre uma pessoa preta e uma branca mesmo que seja de afeto existe reproduções do sistema de dominação racista,até que se desconstrua. É a mesma lógica existente em um relacionamento entre homem e mulher, mesmo que o homem ame a companheira, mãe ou amiga ele ainda reproduz formas de machismo, sendo muitas vezes violento fisicamente.
Só dê para as pessoas o tanto necessário para que ainda sobre e você consiga se manter em pé, só dê o suficiente pra continuar a produzir energia pra você mesma. Respeite seus limites e seu querer. Preste atenção no tanto que estão pedindo de você. Se mantenha viva e saudável, essa é a nossa maior batalha pra resistir nessa guerra.
Conseguir lidar com tudo e mais um pouco não quer dizer que você deve, a força que vem das nossas ancestrais é poderosa, mas se poupar é importante pra quem está sendo colocada no papel de servir e cuidar sendo a empregada desde 1500 quando foi sequestrada e trazida para o outro lado do oceano. Começou em uma situação de trabalho escravo, mas continua nas formas como nos relacionamos e se relacionam com a gente, nas instituições e nas relações pessoais.
Na pirâmide dessas relações o homem branco está na ponta e permanece nesse status através da perpetuação da lógica de dominação que o mesmo começou a séculos atrás. Logo em seguida está a mulher branca, que mesmo sendo atingida pelo machismo ainda assim tem o privilégio da raça. Abaixo dela está o homem preto, que mesmo sendo vítima do racismo ainda se beneficia dos ideais sexistas presentes na nossa cultura, e por último está a mulher preta que nasce sendo alvo do racismo e do sexismo, sem ter pra onde correr. Sofrendo essa dupla violência não é a toa que somos as que mais morrem, as que mais vão presas, as que mais são estupradas e as que mais limpam chão, nascemos na trincheira de uma guerra com o alvo no peito.
O sistema capitalista tem como principal engrenagem no que diz respeito à mão de obra explorada a mulher negra e partindo desse pressuposto “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras. Com isso, muda-se a base do capitalismo” Angela Davis.
É quando nós nos movimentamos que a sociedade muda, é a partir de nós que a revolução começa.
Fico muito feliz ao ver mulheres negras em cargos de poder e representações positivas em diversos âmbitos pois consigo ver essa pirâmide se movendo. Esse movimento acontece sempre que uma mulher negra dá um passo em direção a emancipação social, desde a aceitação de nossos cabelos até a ascensão profissional. Sabendo disso é importante para construir uma luta anti racista verdadeira e anticapitalista que as mulheres pretas caminhem cada vez mais contra a corrente que tem nos puxado para baixo e isso inclui os afetos que muitas vezes acabam por nos colocar muito peso. Precisamos falar cada vez mais porque foram eles que criaram e somos nós que iremos ter que mudar. O sentido é esse, pra cima.
Imagem de destaque: Quituteiras no Rio de Janeiro, em 1875. Marc Ferrez / Coleção Instituto Moreira Salles