Em janeiro de 2023 foi sancionada a Lei 14.532/23, que tipifica a injúria racial como racismo e considera crime qualquer atitude discriminatória ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. Algo que infelizmente não surtirá efeitos imediatos, principalmente diante da compreensão de que precisamos de mais juristas negras(os) que possam trabalhar ativamente na construção de um país com justiça racial.
Mas enquanto não temos acesso ao usufruto pleno dos dispositivos jurídicos, o que podemos fazer para nos proteger enquanto coletividade? Como podemos denunciar o racismo sem causar gatilhos nas pessoas negras? Como acolhemos as vítimas de crimes raciais e acompanhamos os casos?
Recentemente, as redes sociais nos causaram sobressaltos diante de tantos casos de violência racial. A organização Criola participou de uma reportagem feita pelo Jornal Hoje, da TV Globo, que abordou a importância da denúncia de uma menina de apenas 10 anos que foi vítima de racismo no início deste ano. Mas sabemos que essa é uma realidade ainda distante, pois as vítimas nem sempre identificam que estão passando por uma situação de violência racial e/ou sabem como realizar uma denúncia.
Também pudemos acompanhar recentemente uma caso brutal de transfobia, equiparado ao racismo, praticado por um ‘agente da lei’ em Recife, Pernambuco. O Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS) deu os detalhes do caso dessa mulher que foi duplamente agredida, pois, já tinha sofrido uma violência transfóbica e sofreu outra por parte do policial (um tapa no rosto) quando foi informar a agressão que sofreu. A Ex-deputada estadual de Pernambuco Robeyoncé Lima e a Deputada Federal Erika Hilton protocolaram um ofício exigindo que o Governo Estadual e a Polícia de Pernambuco investiguem o caso.
Recém aprovada no doutorado em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ, Etiene Martins alugou um apartamento no Centro do Rio e passou a conviver com xingamentos racistas de uma vizinha. Etiene, que é assessora de comunicação de Conceição Evaristo, identificou a agressora, que foi acobertada pela síndica. Na tentativa de verificar se outras pessoas negras daquele prédio também tinham sido violentadas pela vizinha racista, Etiene Martins decidiu investigar e encontrou Luana Rolim, que passa por essa violência desde setembro de 2022. Amparadas por profissionais do direito, as duas registraram um boletim de ocorrência e Etiene foi as redes para denunciar o ato.
O brasileiro Yago Mateus, jogador do time de basquete alemão Ratiopharm, sofreu ofensas racistas durante uma partida da Eurocopa na Espanha. Ele foi hostilizado por uma torcedora do clube rival. “E por causa da cor da minha pele. Senti aquilo que muitos sentem todos os dias, mas precisam aceitar quietos. Aquilo que alguns não querem ou fingem não ver”, declarou Yago em um texto sobre o ocorrido. Ele segue aguardando que o caso tenha uma resolução e que a justiça seja feita.
O jogador de futebol Vinícius Júnior, que disputa do Mundial de Clubes no Marrocos pelo Real Madrid, foi alvo de provocações e atos racistas por parte de torcedores do Mallorca. A jornalista Luciana Barreto fez um desabafo dizendo que o racismo é cruel e vai minando o emocional das vítimas. Além disso, mesmo que o atleta continue forte e vitorioso em campo, ele também precisa da nossa reação.
Esses casos tiveram cobertura da imprensa, mas também de organizações, coletivos, redes e de pessoas que não se calam diante do racismo. Mesmo com inúmeras dificuldades, foram registrados na polícia, mas sabemos que essas denúncias representam uma parte ínfima da violência racial sofrida diariamente por pessoas negras. É importante observamos como algumas vítimas buscam as redes sociais para denunciar esses crimes, na tentativa de amplificar o caso e de encontrar amparo jurídico e emocional. Prestar solidariedade é importante, mas estamos ouvindo e acolhendo as vítimas de violência racial? Quantos posts na internet são necessários para que uma ação seja tomada? Sabemos que a nossa dor gera ‘clics’, mas precisamos que ela movimente justiça racial nesse país. Devemos pensar outros elementos, para além do “alerta de gatilho”, que possam impactar mudanças.
Blogueiras Negras, com apoio do Fundo Elas, está realizando o projeto “Aliança Negra, a outra face da violência”, que pretende pensar violência racial, sobretudo no meio digital, pelas lentes do cuidado, articulando comunicação, arte e as demandas dos movimentos sociais nessas áreas via pesquisa qualitativa Brasil-EUA.
Para essa articulação, incorporamos um processo investigativo criativo-artístico, que está sendo desenvolvido em Nova Iorque, estabelecendo as primeiras conexões para um intercâmbio que acontecerá este ano. Esse processo vai resultar em mapeamento e articulações com instituições de pesquisa e movimentos sociais que nos ajudarão a imaginar futuros de bem-viver para a população negra, elaborando esteticamente não apenas a mitigação da violência racial, mas um afrofuturo-mundo livre de violência anti-negra.
Precisamos construir e fortalecer mecanismos para combater a violência racial, mas também precisamos pautar a importância do cuidado com as vítimas e do acompanhamento midiático dos casos. Enquanto organização de mulheres negras, acreditamos que o silêncio não nos salvará, mas entendemos a importância de construir artifícios que possam garantir a integridade física, emocional e mental da população negra. Precisamos estar de pé para garantir o fim do racismo e a criação de afrofuturos melhores do que hoje. Não vamos parar.