Dentro de um ônibus lotado descendo entre morros e ruínas da baixada fluminense, uma jovem com a pele da cor do barro observa as estrelas pela janela. Um calafrio na espinha arrepia os pelos do braço e pensa consigo mesma: “perdoa, eles não sabem o que estão fazendo”. Suspira baixinho e inicia uma gravação pelo celular, um longo áudio sem remetente.
“A grande verdade é que, apesar da minha larga altura e sobrepeso, a minha capacidade de levantar veículos e blindagem contra armas de fogo ainda não chegou. E essa força sobre-humana que me prometeram? Eu aguardo dia após dia, ansiosa. Porém, quando caio com a cara no chão, preciso lembrar que eu também sangro. Vinte e Cinco anos, o corpo alvo do ódio, dos rancores coloniais, da falta de amor. A humanidade perdida quando meus ancestrais atravessaram o Oceano Atlântico. Eu herdei essas veias abertas, essa cor de canela, suas sabedorias e, também, suas feridas. Por tanto, continuo na correria para, talvez, curá-las ainda nessa encarnação.
Mas, enquanto busco remediar esses machucados, me permito chorar essas dores, evitando o espaço público. É no colo de outras mulheres negras que posso desarmar a minha fantasia de heroína, tiro a máscara e as luvas de látex, coloco minha peixeira no chão. Meu coração desacelera junto com a rigidez dos meus músculos que aguardam o tempo todo, em todos os lugares, pela próxima porrada. Não fui a primeira a escrever sobre esse choro escondido, mas sigo falando dessas lágrimas compartilhadas em segredo. Criamos outro mar para navegar de volta, um mar salgado como a calunga grande, salgado como nosso sangue, para, um dia, ancorar de volta num tempo em que meninas negras não precisem ser gigantes pra sobreviver.
Pelos seus cálculos, a minha morte viria hoje. Após um intenso trabalho de equilíbrio, finalmente, venho ao chão, de cara no asfalto, rasgando essa pele preta, quebrando meus dentes e massacrando meus olhos em lágrimas de sangue. Mas joelhos ralados não me impedem de caminhar. Lembro das pretas que tiraram a vida antes de mim, minorias majoritárias, mas — para o desespero da casa grande — esse não é áudio para um suicídio. Esses fantasmas me assombram e seus sonhos perdidos dobram de peso ao repousarem nas minhas costas cansadas, carrego em mim esses sonhos acumulados. Estou virando fruto dessa amargura, em minha dificuldade para sorrir. Hoje foi um dia difícil, senti o desespero e compreendi minhas amigas que perderam sua sanidade antes dos 30. Por vezes, me pergunto em qual momento meu corpo foi fechado, para que eu siga insistindo contra estatísticas de forma lúcida, diariamente, quase em transe. Não fui mãe na adolescência, não perdi minha mais velha, não fui morta pelo estado, apesar dos arranhões. Eu ainda não fui morta pelo Estado e vocês não entendem esse medo e também por que vem sendo impossível relacionar-me serena nesse mundo branco, em suas paredes brancas, em sua paz borrada de deboche, nas linhas burocráticas que nos jogam nesse abismo.”
A gravação é interrompida por um vacilo do motorista. Ao descer a rua do SuperMercado do bairro, a embarcação das trabalhadoras do centro quase tomba, deslizando entre becos e ruas e becos e valas e corpos e sombras e sonhos e desaba dentro do Rio Pavuna. As águas cheias de esgoto tinham um gosto salgado, as mulheres com bolsas e uniformes se espremiam entre quebrar janelas para escapar. Enquanto os olhos de Iracema ardiam com o sal, sentia seu corpo se revirando entre as águas, entre a turbulência da queda e desespero para não desaparecer. Fechou os olhos com força e, quando abriu, se notou peixe, cercada por um cardume de cores e formas e cheiro de mar, nadando para fora do ônibus, nadando para retornar aos braços de yemanjá.
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elapartiuantesdostrintaacincokilometrosdecasa é um conto presente no livro de poesia “Filé e outros arquivos” de Renaya Dorea, publicado por convocatória do projeto Mulheres do Sal da Editora Prateado, que incentiva a introdução de mulheres da Região dos Lagos no mercado editorial. Nascida na Baixada Fluminense, Renaya Dorea é artivista multimídia afro-indigena, formada em Artes e Design (UFJF) e na EAV (Parque Lage), estudante da EICTV-Cuba. Sua produção reflete as poéticas da diáspora africana através da autorrepresentação de mulheres afrolatinas e do realismo mágico. Filé e outros arquivos é composto de cartas, contos, ensaios e muitas poesias escritas por celular ao longo de 5 anos. Os textos refletem, por uma perspectiva emocional e existencial, a vida de jovens mulheres negras a partir de si mesmas. Entre em contato com a Editora Prateado por meio do Instagram @prateadoeditora e saiba como adquirir o livro da artista!