O desafio de desconstruir
A solidão da mulher negra e o peso da luta contra o machismo
De acordo com o Censo 2010 (IBGE), 52,89% das mulheres negras estão solteiras, 24,88% casadas e 2,60% divorciadas. Os dados reforçam a herança história que as mulheres negras ainda carregam que resulta, também, na solidão, no sentido de ter um parceiro fixo ou relação afetiva estável. Ainda de acordo com a pesquisa os homens negros tenderam a escolher mulheres negras em menor percentual (39,9%) do que o contrário (50,3%).
Tendo em vista as diversas formas que de violência que as mulheres sofrem e que a psicológica, segundo o relatório do Ligue 180 – Central de Atendimento à mulher do primeiro semestre de 2015, ainda é uma das mais frequentes relatadas, ocupando o segundo lugar com 9.971 ligações; é preciso ressaltar a importância de debater esta temática que afeta tantas vivências, inclusive daquelas que estão diariamente na linha de frente da militância.
O racismo cria uma hierarquia onde a mulher negra lésbica, bissexual, transexual e travesti ocupa a base da pirâmide, depois delas estão as mulheres brancas trans, travestis, lésbicas e bissexuais. No próximo nível estão as negras cisgêneras. Acima delas, estão os homens negros. Na camada superior localizam-se as mulheres brancas e, no topo, os homens brancos.
Esta estrutura releva não só o local que as mulheres negras se encontram no que diz respeito às relações matrimoniais, mas, também, a postos de trabalho ou programas de TV. Existem, ainda, casos em que estas mulheres mantêm um relacionamento, mas continuam solitárias. A ausência de mulheres negras em relacionamentos afetivos é histórica e atual.
Keylla Maynne Bispo Rocha tem 27 anos, é lésbica e estudante de Letras Vernáculas da UFBA. Ela faz questão de dizer o nome completo: “Omitir minha identidade seria me esconder”, afirmou. Para ela, a cobrança em manter um relacionamento, casar e ter filhos é menor do que no universo heterossexual. Keylla diz, ainda, que a solidão dessas mulheres tem um agravante: a homofobia.
“É muito difícil pra nós vivermos o amor de forma igualitária. Muitas pessoas ainda se escondem, se oprimem, oprimem seus desejos e oprimem quem são por conta da sociedade que estamos inseridos. Por isso acabam vivendo, de fato, a solidão. O preconceito faz com que a gente se esconda, o medo de não encontrar alguém que esteja disposto a lutar contra isso faz você se fechar”, explicou.
Fatores como a estigmatização do corpo da mulher negra na mídia são um exemplo das causas que fortalecem estereótipos ligados a essas mulheres. Exaltadas apenas quando aparecem como Globeleza, esta mulher que está em rede nacional seminua invade o imaginário do público seguindo a mesma ideia de quando, na época da escravidão, as mulheres negras menos retintas e consideradas “bonitas”, eram exploradas sexualmente, emocionalmente e levadas para exercerem trabalhos na casa grande.
Paulete Furacão, mulher negra, transexual e coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da População LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros) afirma que a solidão “é um mal que atinge a mulher negra, muitas vezes o pilar da família e vitimada, mas acaba se tornando comum e se perpetua para as mulheres transexuais e travestis. Essa solidão é angustiante e muito mais cruel para nós porque a afetividade nunca chega para a mulher transexual”. Ela explica os diversos tipos de solidão que atingem esse público:
A partir do padrão estético eurocêntrico arraigado na sociedade patriarcal como consequência do racismo, as mulheres negras continuam sem espaço e lutando contra a ideologia de que servem apenas para o ato sexual, enquanto a mulher branca, para casar. Esse conceito vem desde a época da escravidão, quando essas mulheres eram estupradas sob a égide miscigenação e ainda perdura na sociedade que insiste em colocar as mulheres negras como última opção, sendo sempre preteridas.
Este fator releva que não se trata apenas de “questões de gosto”, a preferência de muitos homens e mulheres em se relacionar com mulheres brancas, mas de fatores que estão impregnados em cada um de nós. Ou seja, ‘gosto’ é uma construção social, já que homens negros também são educados a admirarem o padrão estético europeu. Para a jornalista Maíra Azevedo, conhecida também como Tia Má, as ativistas e militantes não escapam desse grupo.
“A solidão é a principal companheira das mulheres negras. Nós não podemos nos silenciar. Falar de afetividade é falar de empoderamento, de política, de vida. Muitas de nós estão morrendo porque a solidão, a depressão nos mata. Eu vivi relacionamentos que tiravam de mim a minha energia e autoestima, é isso que um relacionamento abusivo faz: é você escutar, por exemplo, que ficará sozinha, pois não encontrará fora daquele relacionamento alguém que queira se relacionar com você”, disse.
Essa questão também pode ser percebida na fala da pesquisadora e autora do livro Mulher Negra: Afetividade e Solidão, Ana Claudia Lemos Pacheco. Segundo ela, a afetividade e a solidão são uma temática rejeitada até mesmo por homens negros militantes. “Essa tema de alguma maneira procura demonstrar como as nossas escolhas afetivas e sexuais estão reguladas e permeadas pelo racismo e pelo sexismo. A afetividade é um campo tão importante que pode expressar nossa própria cultura e informar práticas históricas, principalmente referidas a nós, mulheres negras”.
Basta um olhar mais profundo para a nossa sociedade para perceber: a ascensão do homem negro, em grande parte dos casos, traz no conjunto uma mulher branca e loira como parceira, prova disso são alguns jogadores de futebol, atores de televisão e cantores.
Eldridge Cleaver, líder negro norte-americano do grupo Panteras Negras, escreveu em sua autobiografia intitulada Alma no Exílio: “Não existe amor entre um homem negro e uma mulher negra. Eu, por exemplo, amo as mulheres brancas e odeio as negras. Está dentro de mim, tão profundo que já não tento mais arrancar. Todas as vezes que eu abraço uma mulher negra, estou abraçando a escravidão, e quando envolvo em meus braços uma mulher branca, bem… Estou apertando a liberdade”.
No imaginário de muitos homens ainda pesam, hoje em dia, debates como esses. O racismo estrutura todas as relações sociais e, consequentemente, amorosas. É por essa e outras pautas que as mulheres negras seguem em marcha diariamente. Pelo direito à vida e à saúde. Mas, também, pelo direito de amar e de receber amor, seja qual for a fonte.
A SOLIDÃO QUE ME CABE
Katy Illy
Sou preta e só me cabe a solidão.
Não vou namorar, não vou dormir de conchinha, não vou ganhar massagem.
Não vou beijar no cinema, não vou ter a nossa musica, ninguém vai carregar minha bagagem.
Não vou andar de mãos dadas, nem ter em quem me agarrar num filme de terror.
Não vou ver aquele brilho nos olhos de quem ama e ninguém vai pegar pra mim um remédio pra minha dor.
Por ser preta eu não mereço o amor.
Vou trabalhar durante o dia e voltar para uma casa vazia.
Vou deitar na cama e ocupar todos os espaços.
Não vou poder contar pra ninguém o motivo do meu cansaço.
A solidão já é minha amiga, andamos juntas amarradas por um laço.
E de tanto doer já não dói mais, o que fica agora anestesia.
Mas é mentira, eu me engano, me iludo, eu fujo, ignorando esse buraco.
Pensando que um dia essa dor alivia.
Mas não alivia, não passa, não cura, só o amor cura, mas quem ama a preta?
Ninguém. Quem sabe um dia…
É uma vida sem amor, é uma vida sem paixão.
Não me cabe o amor, me cabe apenas a solidão.
Cultura do… o quê?
É PRECISO PARAR DE NATURALIZAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, AFINAL É ASSIM QUE SE CONSTRÓI A CULTURA DO ESTUPRO
Enraizada nos lares, nas ruas, nas revistas, na TV, nos filmes, e em toda parte… os ditos “cuidados ao sair e ao se vestir”, para mulheres, são atitudes que impõe que as mesmas é que devem se precaver caso aconteça algum assédio. Essas mesmas atitudes reforçam a construção da cultura do estupro, termo utilizado para denominar o modo em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e faz com que o comportamento sexual violento dos homens seja tratado como algo normal.
Uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, em setembro de 2016, revela que a cada 11 minutos uma mulher é violentada no Brasil. Segundo dados do Ipea 94% dessas vítimas correspondem a casos de estupro. Considerando que 85% das mulheres brasileiras têm medo de serem estupradas e que esse índice sobe a 90% na região Nordeste, o estudo também revela que, um em cada três brasileiros concorda com a afirmação de que “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada” e que “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”.
Utilizado para definir a naturalização do comportamento sexual violento dos homens, a cultura do estupro é um termo usado desde a década de 1970, quando se iniciaram as discussões sobre a violência contra a mulher. Geralmente as vítimas de assédio sexual, em sua maioria mulheres, são questionadas sobre o real acontecimento do ato, enquanto que os homens com simples justificativas, tem suas responsabilidades tiradas, por estar teoricamente alimentando o seu instinto.
A forma como foi construído que o cuidado deve partir apenas das mulheres, faz com que essas se sintam responsabilizadas diante da falha para impedir que alguma violência tivesse acontecido com elas. Em outras palavras, o termo “cultura do estupro” é utilizado para denominar o modo em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e faz com que o comportamento sexual violento dos homens seja tratado como algo normal. Tal atitude é consequente da naturalização de comportamentos patriarcais e machistas, que presenciamos desde uma simples cantada, piadas sexistas, assédio, estupro até o feminicídio, onde o homem apenas por ser quem é pode realizar tais ações sobre uma mulher também apenas por ser quem é.
Ser mulher é…
As mulheres vivem sob constante ameaça.
Ser mulher não só no Bahia, no Brasil, na América, mas no mundo é ser culpada por qualquer constrangimento sexual que venha a passar. Seja por apenas uma cantada na rua enquanto caminha para o trabalho, para a escola, para o supermercado, para o lazer; pela roupa que esteja usando; pela hora em que está andando na rua; por estar bêbada; por ser forçada a fazer sexo com o companheiro, afinal, ele é seu marido ou namorado.
Geralmente acredita-se que a maioria dos casos de estupros acontece com estranhos na rua, mas conforme dados levantados pelo Ipea em 2014, mais de 50% dos estupros sofridos por crianças e adolescentes foram praticados por pessoas conhecidas, como pais, padrastos, namorados e amigos. Em adultos, os estupros praticados por conhecidos são quase 40% dos casos.
O que nos coloca a reflexão sobre os devidos cuidados repetidos e fundamentados sobre o tipo de vestimenta, os horários de saída na rua e a questão da companhia… a violência está mostrando a cara, dentro de casa e ainda assim o senso comum leva a sociedade a não acreditar na fala da vítima que toma coragem de ir denunciar tal ação de violência.
Buscar justificativas para o ato violento sofrido por uma mulher com base em sua vida sexual, suas vestimentas, é fomentar a cultura do estupro. Fomos instruídos a acreditar que o homem é o seduzido, que foi levado pelo instinto ou que agiu de determinada forma para comprovar sua masculinidade, mas continuar seguindo essa linha de raciocínio é fomentar a cultura do estupro.
Previsto no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, o estupro é considerado crime. A lei brasileira de 2009 considera estupro qualquer ato que tenha como objetivo a satisfação sexual contra a vontade da vítima ou contra alguém que, por qualquer motivo, não pode oferecer resistência.
O estupro em si não é apenas de um crime relacionado a sexo ou desejo sexual. Mas, sim, uma relação de poder, na qual há um processo de intimidação onde os homens mantêm as mulheres em um estado de medo permanente de serem hostilizadas e violentadas, acabando por se submeterem à autoridade masculina para evitar mais violência. Considerando que as mulheres são vistas como propriedade dos homens,essas, acabam por cederem aos desejos masculinos já que, “homem é assim mesmo” e antes que ele ameace utilizar a sua força, a mulher cede, pois foi ensinada desde a sua infância a temer tal comportamento masculino.
Para além da naturalização dos fatos, o silêncio do ato
Bruna* desde os 15 anos de idade teve receio de falar, não só por imaginar que seria julgada, mas porque se sentia culpada. Quando contava para as amigas sobre a perda da sua virgindade, usava do humor para esconder a dor e todo sofrimento que tinha passado. Até ter conhecimento do que era estupro, criava justificativas para o ocorrido. Afinal, todos diziam que “c* de bêbado não tem dono”, e não é bem assim.
Dados da pesquisa online realizada e divulgada nas redes sociais pela equipe revelam que dentre os motivos para a vítima de violência não denunciar a situação está à vergonha moral do ato, o medo do julgamento social, o sentimento de culpa e o medo de ser julgada e maltratada. Considerando que em alguns casos a atuação das políticas públicas de apoio e proteção à mulher mostrou atendimento limitado, principalmente na região periférica da cidade, onde vivem as mulheres negras, que segundo dados do Ipea são as mais as mais agredidas e as que menos denunciam seus agressores.
“Para Mulheres Negras, a quem o estupro diz respeito, raça precedeu questões de gênero. Somos ensinadas que nós somos primeiramente negras, e então mulheres… Mulheres Negras sobreviveram, mantendo silêncio, não apenas por vergonha, mas por uma necessidade de preservar a raça e sua imagem. Em nossas tentativas de preservar o orgulho racial, nós mulheres negras temos muitas vezes sacrificado nossas almas”
Charlotte Pierce-Baker. Autora de Surviving the Silence – Black Women’s Stories of Rap
“Ser mulher já é uma desvantagem nesta sociedade sempre machista, imagine ser mulher e ser negra.”
Angela Davis. Ativista Política.
Antes que seja tarde
Assim como dizem as próprias responsáveis pela Rede de Proteção, as leis federais voltadas para questões de gênero precisam ser melhoradas em muitos pontos, a exemplo da medida protetiva e do atendimento as mulheres vítimas de violência que recorrem às delegacias.
A informação é uma das principais formas de combate à violência contra a mulher, a cultura do estupro e ao sexismo. Afinal, existem outras Cristinas, Robertas, Fernandas, Marias, Anas e Amandas que são silenciadas, que não tiveram coragem de procurar ajuda por vergonha ou que não tiveram a oportunidade em tempo de estarem vivas para fazê-la.
Percebe-se, portanto, que os modelos de gênero e raça forjados nas escolas, família e distintas instituições sociais, determinam um conjunto de atitudes, posturas e modos de agir diferencialmente recomendados aos sujeitos.
Seguiremos na luta contra a violência, opressão, racismo, sexismo e ao machismo.
Antes que seja tarde.