Durante o velório de mais um jovem negro assassinado por polícias brancos, Malcolm X (1962) iniciou o seu discurso com os seguintes questionamentos: “Quem te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da sua pele de tal forma que você passa alvejante para ficar como o homem branco? Quem te ensinou a odiar a forma do nariz e a forma dos seus lábios? Quem te ensinou a se odiar do topo da cabeça para a sola dos pés?”. Acredito que, nesta ocasião, Malcolm X já sabia que o colonialismo forjou uma história, uma percepção de mundo, criou padrões de bom e ruim, de bonito e feio, e tudo o que não correspondia ao padrão de pessoas brancas não deveria existir.
Pautados por teorias sem fundo científico, com origem na Europa no século XIX, pensamentos eugenistas foram amplamente usados para justificar e consolidar o racismo estrutural. No Brasil, as ideias da eugenia racista foram amplamente divulgadas por João Batista Lacerda, o qual defendeu que todas as características físicas e culturais negras estavam ligadas ao atraso da evolução humana. A partir de teorias como estas, características das populações negras foram, dia após dia, ano após ano, século após século, ligadas ao primitivo, ao criminoso, ao feio, transformando a existência negra em degeneração.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, publicado especificamente em 18 de julho deste mesmo ano, 83,1% das vítimas de violência intencional são homens negros, em um total de 99,2% de vítimas entre o sexo masculino. Em muitos sites, blogues, textos acadêmicos, redes sociais, camisetas, bandeiras, adesivos etc., pode-se encontrar as frases: “A cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil” e “Eu te desejo mais de 23 minutos”. Certamente, em algum momento, você teve acesso a essas frases ou até mesmo a outras. Mas a pergunta que me faço há algum tempo é: o que efetivamente estamos fazendo para que as estatísticas mudem?
Partindo deste questionamento, quero propor uma reflexão sobre o nosso papel enquanto mulheres negras brasileiras neste debate. Não é a minha intenção criar regras, inventar a roda, até mesmo porque isso já vem sendo feito há algum tempo, não quero apontar dedos e principalmente esquecer que as mulheres negras estão na base da pirâmide social e são as que mais sofrem com as violências. Quero humildemente tentar contribuir com esse debate.
Muitas pessoas podem dizer: isso é responsabilidade do racismo estrutural, a mão do Estado agindo para o genocídio da população negra. Esse tema tem muitas camadas, concordo que o racismo é o principal agente. Sou consciente também que os dados sobre violência doméstica cometida por homens negros são reais. Não quero vitimizar o agressor, mas entendo que ele faz parte de um ciclo sem fim de violações e violências. Juliana Borges discute, no seu livro “Encarceramento em Massa”, que cada vez mais mulheres negras estão pagando o preço de várias formas, inclusive sendo encarceradas por terem que sustentar filhos ou companheiros por causa da violência.
Em uma conversa com Kátia Silva Simões, uma grande amiga e pesquisadora do campo da segurança pública, Kátia me disse que a violência é um ciclo onde às vezes se violam direitos, às vezes têm seus direitos violados, às vezes se sofre violência e, em outras, você é agente de violência. Para pessoas brancas de classe média, que tiveram seus direitos garantidos, essa afirmativa não se aplica. São elas que violam os direitos dos outros justamente como uma estratégia de manutenção de seus privilégios.
É complexo, eu sei, pois se ocupa tanto o lugar de vítima como de autor. Não é linear e nem causal, a linha que separa a vítima do agente é muito tênue. Desde então, eu sempre busco lembrar que todo homem negro caído no asfalto ou que está em uma penitenciária (onde também são a maioria) já foi uma criança.
Esse exercício me leva a me perguntar: onde está a linha que separa eles da humanização? Em que momento começamos a olhar homens negros apenas a partir da ótica feminista branca? Em que momento essa linha tênue transforma um menino negro em um possível agressor? Em que momento caímos na armadilha colonial e começamos a nos violentar? Em que momento, na hora da nossa indignação, estamos mais propensas a romper com homens e meninos negros do que com os brancos?
Em minha experiência como professora e educadora, consegui perceber essas relações na prática. Em um conflito na sala de aula envolvendo meninos negros, as meninas não pensavam duas vezes em levantar o dedo e apontar na cara desses meninos, reivindicando seus direitos e até os agredindo verbalmente. Em contrapartida, quando a situação é com meninos brancos, essas mesmas meninas têm atitudes totalmente diferentes. Quando meninos brancos as violentavam, elas denunciavam para mim ou diretamente para a coordenação pedagógica, não expondo esses meninos.
Não podemos perder de vista a máxima Raça, Classe e Gênero, pois a maioria das vítimas da violência são mulheres e homens negros pobres. Somos nós que menos acessamos espaços de poder. E precisamos, de forma coletiva, começar a agir com homens brancos da mesma forma que agimos com os homens negros, ou melhor, precisamos dar aos homens negros as mesmas chances que damos aos homens brancos!
Três das minhas pessoas favoritas neste mundo são homens negros. Dois deles são pais e são meus exemplos de paternidade. Um deles tem um filho que, no próximo ano, vai fazer 3 anos. Desde que seu filho nasceu, cotidianamente tenho a sorte de acompanhar os seus esforços para ser um exemplo de pai, nos acertos e nos erros. Mas esse meu amigo, homem negro, pesquisador, professor, Ogã e muito mais, cotidianamente precisa provar a sua humanidade e que é capaz de cuidar do seu filho. Muitas vezes eu o encontro exausto dessas provações. Algumas vezes conseguimos conversar sobre o tema, e tem sido ele também que, mesmo sem saber, alimenta meus questionamentos. Não quero heroicizar este meu amigo, e nenhum outro homem negro que cumpre suas obrigações, até mesmo porque os que realmente estão comprometidos com suas famílias não desejam ser colocados no lugar de herói.
Só desejo lembrar que, historicamente, da mesma forma que muitos homens negros não cumpriram suas obrigações, muitos ficaram e ficam. Conheço e tenho certeza que você conhece muitas histórias de famílias negras onde homens negros ficaram. Sem dúvidas, muitas dessas histórias são repletas de erros e acertos. Não podemos perder de vista que somos seres humanos e temos o direito de errar. Como também, em sua maioria, somos pobres, onde nossas mães e pais foram ausentes em nossas vidas por precisarem trabalhar muito para nos alimentar.
No meu caso, não tive um pai presente. Minha mãe, vítima de violência doméstica, conseguiu sair viva do seu relacionamento por muito pouco. Com 30 anos e com 6 filhos para alimentar, eu comecei a ter uma rotina que encontrava com a minha mãe todos os dias apenas quando já tinha 11 anos. Fui alimentada por ela e cuidada por meus irmãos não muito mais velhos que eu. Pobreza, violência, ausências, carências e fome estiveram no meu cotidiano. Cresci em um bairro pobre, em sua maioria de pessoas negras, e lembro que já percebia que a maioria das famílias negras do meu bairro era composta por pai e mãe.
Talvez por conta da minha experiência eu venha fazendo estes questionamentos. Minha vivência me mostra cotidianamente como as pessoas que detêm o poder em nosso país (que, em sua maioria, são pessoas brancas) escolhem cotidianamente, de forma perversa, ignorar e alimentar as desigualdades, fazendo uso da ignorância de alguns, provocando conflitos e oprimindo homens e mulheres negros até que sucumbam.
Nos últimos dias, você pode ter visto o vídeo de um homem branco apontando uma arma para um menino negro em frente à estação Carandiru, da linha azul do metrô, na zona norte de São Paulo, onde uma PM fardada se recusou a ajudar o menino. Mesmo após ser procurada pelo menino, ela dá um chute nele e não faz nada, além de dizer que estava de folga. Esse vídeo é revoltante em diversas formas, ou deveria ser.
Essa cena retrata de forma muito pedagógica o racismo estrutural, e devemos nos perguntar: qual teria sido a atitude desta policial se quem estivesse apontando a arma fosse um homem negro? E se o jovem fosse um menino branco? O que teria acontecido se isso não tivesse acontecido à luz do dia?
Infelizmente, cenas como esta não são raras, pois qualquer situação que envolve vidas não brancas, a morte é a solução. Tenho a impressão que, quando pessoas brancas são flagradas matando ou ameaçando pessoas não brancas, as narrativas construídas buscam justificar essas ações, com: há mais alguma coisa essa pessoa fez, talvez tenha sido por legítima defesa, transformando a vítima no vilão e o verdadeiro vilão, quando é uma pessoa branca, em um cidadão se defendendo apenas.
Carlos Moore (2005) aborda a categoria de raça para pensar as origens do racismo, fazendo uma crítica àqueles que argumentam a inexistência do racismo, alinhado à ausência da ideia de raça como fenômeno biológico. Argumento este inconsistente, já que, mesmo com a comprovação científica da inexistência da raça biologicamente, a mentalidade dos indivíduos continua pautada e guiada a partir desses princípios. Ou seja, como afirma Achille Mbembe (2014), a raça possui efeitos reais no nosso imaginário até os dias atuais.
E não diferente de outros, esta PM em questão tem seu imaginário pautado na concepção de que as vidas de pessoas negras são descartáveis. Sabemos que a necropolítica determina há muito tempo quem deve morrer. Estamos assistindo atônitos o projeto eugenista em ações até os dias de hoje. A falsa abolição criou a ilusão de que somos livres, a Constituição Federal de 1988 reforça essa ilusão e nos afasta da verdade: vidas não brancas não importam.
Eu queria muito abraçar esse menino e dizer para ele que tudo vai ficar bem, tentar acalmar seu coração, tentar orientá-lo da melhor forma possível e tentar mostrar através do amor que ele merece viver, que sua vida não é descartável, que é possível contornar tudo o que esse trauma pode causar nele. Dizer que meninos negros também amam, merecem nascer, crescer e serem amados.
O colonialismo nos ensinou a nos odiar e a sermos odiados de maneira sistemática ao longo dos séculos. Cotidianamente, somos bombardeados de diversas formas pelas ideias eugenistas defendidas e propagadas livremente internacionalmente. No Brasil, João Batista Lacerda (1911) foi um dos seus percursores. Eugenia significa “bom nascimento”, que seria o ideal de pureza racial proposto inicialmente por Francis Galton em 1883, na França, como um estudo dos indivíduos influenciados pelo controle social, e como isso pode impactar positiva ou negativamente as características raciais das gerações vindouras, tanto em termos físicos quanto mentais, ou seja, o aprimoramento genético.
No Brasil, foi incentivada a miscigenação, onde pessoas negras deveriam só se relacionar com pessoas brancas para que os filhos dessa relação nascessem com menos ou zero fenótipos de ascendência negra e que os filhos desses mestiços nascessem brancos. Conseguindo assim o desaparecimento de negros e mestiços no Brasil em cem anos.
Quando falo sobre darmos aos homens negros as mesmas chances que damos aos homens brancos, acredito que com isso temos a possibilidade de aumentar as chances das mulheres negras e, consequentemente, criar possibilidades para que toda a população negra possa viver, visto que, quando um homem negro morre, é uma mãe negra que chora. Quando um homem negro é aprisionado, é uma mulher negra, em sua maioria, que sofre as consequências.
Precisamos exigir a nossa humanização, e isso precisa começar por nós!
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REFERÊNCIAS
Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2. Segurança pública – Estatística – Brasil. 3. Violência – Estatística – Brasil. 4. Direitos e garantias individuais – Brasil. I. Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf
OBSERVATÓRIO de Favelas: Rotas de fuga. Rotas de fuga. 2013. Disponível em: https://observatoriodefavelas.org.br/rotas-de-fuga/. Acesso em: 24 out. 2023.
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
CANDIDO, Mariana P. O limite tênue entre liberdade e escravidão em Benguela durante a era do comércio transatlântico. Afro-Ásia, p. 239-268, 2013.
OLIVEIRA, Isabela Venturoza de. \’Homem é homem\’: narrativas sobre gênero e violência em um grupo reflexivo com homens denunciados por crimes da Lei Maria da Penha. 2016. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
SIMÕES, Kátia Silva. Lei de drogas e medidas socioeducativas: a criminalização de adolescentes pobres no estado de São Paulo. 2022.
MOORE, Carlos Wedderburn. Novas bases para o ensino de História da África no Brasil. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal no 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005
MBEMBE, A. Necropolítica. 1ª edição [2003]. São Paulo: N-1, 2018a