No dia 23 de janeiro, a crônica jornalística e midialivrista foi invadida por uma avalanche de comentários e opiniões – em texto, verso e prosa – sobre o autoexílio do deputado federal eleito Jean Willys. Num comunicado, Jean Willys diz que chegou no seu limite, levando uma vida incompleta, quebrada, em razão das ameaças de morte, extensivas à sua família, e da difamação que sofre desde o início de sua vida política. Na carta, Jean Willys revela que há quase há um ano tem sua vida protegida por escolta policial. O texto também informa que Jean opta por preservar sua vida e cuidar de sua saúde física e mental no exterior e que conta com partidários para continuarem a luta no parlamento. Diante das muitas abordagens sobre a questão, fui atraída por uma que considerava um privilégio o fato dele poder resguardar sua vida no exterior. Particularmente, tive alguma dificuldade para entender como uma vida cercada de ameaças de morte, difamação, sem liberdade para ir onde você quer e ocupar um cargo político para o qual você foi eleito, poderia ser considerado um privilégio. Jenair Alves, ativista do Coletivo As Carolinas e doutoranda de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi a ativista que me concedeu essa entrevista e me ajudou a entender esse lado da história. Para ela, os negros das periferias veem a morte todos os dias e não conseguem sequer mudar de bairro.
Quando foi divulgada a notícia da renúncia de Jean Willys e da permanência dele no exterior, você disse ser um privilégio. Eu queria que você explicasse seu ponto de vista sobre essa situação.
Eu sei que a minha opinião pode parecer um pouco dura frente a todos os apoios que ele recebeu e eu não deixo de apoiá-lo. A minha questão não é com relação ao que o Jean fez ou deixou de fazer, mas é de atentar com relação ao privilégio. Ao privilégio que ele tem e usou como pode usar e está usando. Eu não tenho como dizer se eu usaria de outra forma. É uma situação muito peculiar porque você tem que decidir entre poupar a sua vida, saindo um pouco do ambiente, mudando de rota, se preservando (e é lógico que isso tem um peso enorme) ou se você vai permanecer nas trincheiras lutando e pautando o que você defendeu a vida inteira. Eu não acho que a morte será evitada por causa disso, porque ela vai chegar para todas nós. Particularmente, no caso de Jean Willys eu acho até que essa decisão extrapolou a vontade do próprio Jean por considerar ameaças à sua família. Falo tudo isso para te dizer que eu não deixo de achar que essa decisão é um privilégio.
Você pode explicar melhor porque eu tenho certa dificuldade de ver como é um privilégio a pessoa que está nessa situação?
Não se trata de uma crítica pessoal ao Jean. Eu tenho o entendimento de que outros defensores de direitos humanos veem a morte passar diante dos seus olhos todos os dias e não tem as mesmas condições, os mesmos privilégios de poder sair, dar um tempo, se mudar, por exemplo. Eu falo da minha realidade, da realidade de Natal (RN). Recentemente, um bairro chamado Mosquito vem sofrendo um ataque muito forte da polícia, das milícias e das facções num movimento de expulsar as famílias e as lideranças que ainda resistem ali. Elas agem no sentido de evacuar mesmo. Também recentemente, houve um ataque da polícia e das facções a uma comunidade quilombola que está sendo invadida pelo tráfico que acabou vitimando pessoas e ameaçando lideranças.
As ameaças feitas a Jean Willys e as mortes da periferia são tiros que saem da mesma arma?
Se vem da mesma arma, eu não sei, mas é o mesmo propósito, o mesmo objetivo. Isso, eu não tenho dúvidas. Eu tenho um entendimento de que há uma política de estado superior que pensa e estratégia o genocídio e o extermínio da juventude negra, do povo negro, e eu penso que essas mortes também são políticas. Eu não estou contra o Jean, só estou pontuando a questão do privilégio. As pessoas querem mudar de bairro, elas também querem salvar suas vidas e elas não tem condições de mudar. A casa que elas têm ali é própria ou é uma casa que a família viveu a vida inteira. Além da relação econômica, tem a relação afetiva com o lugar, com as pessoas. Alguns não querem sair. Outros não podem por razões econômicas mesmo; por não terem condições de pagar aluguel em outro lugar. Eu acho que, no fundo, o objetivo do extermínio que acontece nas periferias e favelas também é político.
Poucas pessoas fizeram essa relação.
A impressão que eu tenho é que as pessoas não falam sobre essa abordagem especificamente no caso do Jean em respeito a tudo que ele defende e representa, inclusive no momento do golpe. Fica parecendo que fazer qualquer discussão, mesmo que não seja uma crítica, pode vir a ser interpretada como crítica e que, de certa forma, poderia ser uma tentativa de “manchar” ou “questionar” a imagem e as atitudes do Jean.
Considerei importante seu posicionamento porque não é de hoje que defensores de direitos humanos são assassinados quando não conseguem ser protegidos, entretanto percebo que, desde a posse do novo governo federal, a vida de lideranças de movimentos sociais e defensores de direitos humanos está mais fragilizada. Essa percepção é verdadeira?
A vida dos defensores de direitos humanos nunca foi fácil. As histórias que conhecemos nos mostram isso. Às vezes, não dá nem tempo da liderança ganhar projeção nacional que sua vida é logo ceifada. Os que estão no campo e favelas são os mais facilmente atingidos, pois estão em espaços em que não há cobertura da grande mídia e essas mortes se perdem nas estatísticas. Porém, é importante destacar que desde o período eleitoral pra cá a gente percebe a olho nu uma crescente banalização da violência. Um acirramento do pedido popular por vingança, e não por justiça. Vide pesquisa que aponta desejo pela redução da idade penal, pelo porte/posse de armas etc. Além disso, observamos explicitamente as pessoas se sentirem autorizadas a serem desrespeitosas em nome de uma falsa liberdade de expressão, de uma defesa da propriedade privada e de questões que a gente pensava que tinham tido uma evolução, como por exemplo, a relação homem-mulher, mas não, basta observar o aumento do feminicídio, da homofobia explícita etc.
Isso tudo está acontecendo num contexto de um governo que se caracteriza como conservador e que não quer mudar nada disso aí. Ao contrário, se coloca como ter nada a ver e se exime de qualquer responsabilidade. Tudo isso, aliado a já anunciada criminalização dos movimentos sociais.
É um governo que têm engajado os movimentos sociais como inimigos, quais são as possibilidades de interlocução com ele para assegurar a vida desses defensores?
Certamente, o Ministério Público, por exemplo, antes aliado dos movimentos sociais em alguns momentos, solicitando a proteção de defensores, pode, agora, receber uma orientação para não subsidiar essa proteção. Eu penso que não será fácil essa interlocução, mas que teremos que encontrar as brechas. Entretanto, eu acho importante garantir os espaços de interlocução e controle social, que são os conselhos, que não têm recebido a devida atenção. Por exemplo, o governo federal extinguiu o CONSEA, um conselho super importante onde havia presença de quilombolas, povos de terreiro, representantes de comunidades ribeirinhas etc. Era um conselho que discutia algo muito caso para o país: a segurança alimentar e nutricional. Agora, não temos mais, e aí? Os movimentos estão protestando, mas não estão sendo ouvidos, sabe?
Mas é possível?
Estamos em outro patamar de negociação. Com os governos anteriores, a gente tinha como barganhar, com esse, não. As estratégias terão que ser outras. Investir na formação de base, na comunicação popular e alternativa, criar canais contra hegemônicos, requerer apoio internacional, convocar as fundações que foram embora quando achavam que a democracia estava consolidada.
A decisão de Jean, acaba expondo ainda mais a questão sobre a garantia da vida e da liberdade de defensores de direitos humanos.
Exatamente. E essa é uma questão que a gente precisa responder: como garantir a vida e a liberdade dessas pessoas? O meu entendimento é que o Brasil ainda não conseguiu entender, enquanto Estado, o que é a defesa de direitos humanos e o risco que se corre no nosso paós quando a gente se coloca enquanto tal. Eu lembro que na extinta SDH (Secretaria de Direitos Humanos) havia uma coordenadoria específica de direitos humanos que pensava nisso. Inclusive, se não me engano, criando programas de proteção.
Sinto que há um acirramento do horror que a população tem a tudo que se refere ao humano…
É uma visão, mas eu acho que essa perspectiva também foi elaborada politicamente. Nós passamos por um período, inclusive no cinema, onde o estado do defensor de direitos humanos se tornou banal e estereotipado. Eu lembro que ‘Tropa de Elite’ e outros filmes similares, muito populares no país, colocavam o defensor de direitos humanos como defensores de bandidos. Assim, a imagem do defensor de direitos humanos se tornou asquerosa para a grande massa. A campanha eleitoral de Bolsonaro investiu pesadamente nisso, reforçando o ataque que os defensores de direitos humanos já vinham sofrendo há algum tempo, desde a investida de Marcos Feliciano. Para mim, está tudo conectado.
Quais sãos os perigos da perspectiva que está sendo implantada? O que a gente não está vendo?
Estereotipar a imagem dos defensores de direitos humanos. Depois, atacar e barrar projetos interessantes, ocupando a comissão de Direitos Humanos. Em seguida, a Lei Antiterrorismo, criminalizando mobilizações sociais. Por fim, a campanha eleitoral criminalizando defensores de direitos humanos e de movimentos como MST, MTST etc. Como se os defensores de direitos fossem uma ameaça a segurança pública, à justiça, a propriedade privada, a família, a igreja etc. Quem é contra tudo isso?
Agora, os perigos são vários. O mais visível é a autorização para o homicídio. Aqui no Rio Grande do Norte, um dos líderes dos ‘Policiais Antifascismo’ foi brutalmente assassinado em dezembro em cumprimento a várias ameaças que ele já havia recebido. Ou seja, é bem provável que quem estiver ameaçado seja assassinado a não ser que tenha o privilégio de mudar de país para um endereço não conhecido e, ainda assim, eu duvido, porque quando se quer eliminar alguém, se dá um jeito.
Mas o perigo subliminar é outro e é maior. É o risco de não haver sucessão. Marielle se multiplicou. Jean terá substituto com pauta semelhante, mas e os defensores comunitários, os que não têm privilégios ou foros privilegiados?
O enfraquecimento dos movimentos comunitários é um dos grandes impactos da ausência das lideranças?
É um dos maiores. Quando a comunidade fica sem liderança, ela desbaratina e demora a se reorganizar. Um perigo é que a bala seja mais rápida do que a formação, que o homicídio chegue antes que uma nova voz possa surgir, e que a luta seja secundária em nome da vida. Perigo da gente se tornar um país sufocado sem gritar suas contradições com medo de morrer. Ou seja, uma ditadura não militar autorizada e reforçada pelo estado.
Há muito pra fazer, mas não dá pra ficar triste. É um cenário possível, mas não quer dizer que irá se concretizar.
Pós-escrito.: Terminei a edição dessa entrevista no dia 3 de fevereiro, logo depois de saber da notícia da morte da ativista Sabrina Bettencourt e me convenci de que mesmo a distância física das ameaças não nos protege da dor das violações de direitos humanos sofridas.
Jean, cuide-se. Precisamos de você vivo (e de outros também).
Sabrina, que você encontre alívio para suas dores.
A todas e todos que estão nas trincheiras defendendo os direitos humanos, obrigada pela luta.