Em 1851, na Convenção de Mulheres antiescravistas, que ocorreu em Akron, Ohio, Sojourney Truth (1797-1883) levanta-se em meio a um auditório de mulheres brancas ditas “progressistas” e se coloca:
– “Eu não sou uma mulher?” – Truth estava remando contra uma maré que, infelizmente, ainda anda alta: a necessidade de provarmos e reafirmarmos nossa importância, nossos direitos, nossas opiniões e exigirmos respeito de outras pessoas que deveriam ser “nossas iguais” e que, não, não são (ou não se posicionam com igualdade).
A abolicionista questionava a ação das mulheres brancas que eram antiescravistas, mas não consideravam as mulheres negras tão mulheres quanto elas. As mulheres negras, ainda, eram vistas como seres de segunda classe, que deveriam trabalhar a preço de miséria, ou em troca de comida. Mulheres negras não deveriam discursar em audiências públicas, embora fossem conteúdo de muitos discursos inflamados proferidos pelas irmãs brancas.
Truth questiona de forma eloquente se ela não era, então, uma mulher. Se não deveria ser tratada como uma mulher e ter voz como todas presentes na audiência. Infelizmente, seu discurso não era bem-vindo, sua voz não era ouvida e, hoje, quase 200 anos depois, ainda querem discursar sobre nós, mas não nos deixam falar, ou ainda, nos confinam num único lugar: falarmos da opressão que sofremos para quem nos oprime!
Se eu, hoje, olhar para trás e contabilizar o tanto de energia que investi em provar que eu merecia estar em determinado espaço, exercer determinadas funções e ser respeitada, com certeza eu teria já terminado o doutorado. Após anos de uma militância fadigosa (Akilah Hughes, 2015), que me cansava e me fazia brilhar menos, passei a questionar essa demanda dos opressores: querem que eu gaste toda a minha energia rebatendo o racismo, mas eles não deixam de ser racistas.
Como combater, então, uma sociedade opressora sem “dar tapa em ponta de faca”? Nossa autoestima é atacada, nossas capacidades são atacadas e, quando falamos, querem que provemos nossas existências. Não, me recuso. Nossa voz não é reativa ao racismo – é maior, nossas mentes são produtivas, nossas mãos são habilidosas, nossos corpos são performáticos e nossas vozes são diversas. Não nos confinem, não aceitaremos!
Afinal, eu não sou uma escritora? Uma acadêmica? Uma engenheira? Uma jornalista? Uma médica? Eu não sou uma professora? Uma analista financeira? Uma economista? Advogada? Juíza? Por que preciso direcionar todas as minhas energias para provar que o racismo existe e convencer os outros a deixarem de ser racistas? E se eu quiser escrever sobre a vida das borboletas? Ou sobre o fim do arco-íris?
Não terei espaço? Minha militância vende? Somente meus antepassados interessam como pauta? Querem nos colocar em nosso lugar de negras e que só sobre isso tenhamos direito de falar.
NÃO!
E se eu quiser falar sobre cozinha francesa ao invés de feijoada? Vende?
E se eu não tiver uma vida sofrida e de superação? Não sirvo? Negra boa é negra sofrida?
E se eu quiser propor uma nova análise política? Não serei ouvida?
Parece-me que o local de fala da mulher negra no imaginário social é uma concessão, não uma conquista! Em respeito a todas as ancestrais e manas que nos antecederam, denunciaram e lutaram, não queremos mais ter nossas produções e falas circunscritas a um único espaço. Elas lutaram para que pudéssemos ser livres no pensar, no agir e em nossas existências. A nossa presença nos espaços públicos já é política! A nossa existência é política! A nossa liberdade, nossos corpos e o exercício de nossas sexualidades já são políticos.
Não precisamos falar e tentar provar o tempo todo a nossa existência, esta é uma forma de nos impedir de existir, de nos impedir de falar, de impedir nossa expressão a respeito de tudo que pensamos. Escrever é um ato político, estar aqui é um ato político, disputar o espaço dos jornais, das revistas, das editoras é um ato político. Mesmo que não haja uma linha em nossas produções mencionando racismo. Resistiremos, avançaremos, não nos calaremos!
Resistiremos, avançaremos, não nos calaremos. Assim como Sojourner Truth não se calou, e segue nos inspirando com seu discurso potente e que tão bravamente colocou a nossa condição de mulheres negras na luta por direitos. Discurso tão presente, tão potente e tão necessário.
Discurso de Sojourner Truth
Muito bem, crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem. Eu acho que com essa mistura de negros (negroes) do Sul e mulheres do Norte, todo mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?
Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso… [alguém da audiência sussurra, “intelecto”). É isso, querido. O que é que isso tem a ver com os direitos das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu está cheio, porque você me impediria de completar a minha medida?
Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso.
Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem.
Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer.
Tradução: Osmundo Pinho