Por Bruna Rocha para as Blogueiras Negras
Em 1785, numa pequena cidade da Prúsia, o dedicado e metódico filósofo Immanuel Kant, responsável por importantes formulações sobre a Razão Humana, publicava a ‘Fundamentação da Metafísica do Costume’ – obra que até hoje incide sobre os tratados de sociologia e convivência no planeta terra.
Profundo observador da realidade social e conhecedor da tradição filosófica que o antecedeu, Kant propôs alguns valores que nortearam Leis, Constituições, Regimentos e todo o tipo de acordo entre povos, países e pessoas. Aqui, me aterei ao princípio da dignidade humana.
Faço esta opção política e semântica, ao averiguar uma série de incongruências na abordagem deste princípio por parte dos segmentos conservadores e autoritários, sobretudo quando se trata da problemática do aborto no Brasil.
Nesta quarta-feira, 5 de junho, mais uma Comissão da Câmara de Deputados (Finanças e Tributação) aprovou o Projeto de Lei nº 478, apresentado na casa em 2007 pelos deputados Luiz Bassuma (PV) e Miguel Martini (PHS), cujo texto dispõe sobre a criação de um Estatudo do Nasciturno – comumente conhecido como feto.
Enquanto mulher, negra, feminista, socialista, adepta ao Candomblé e filha de Xangô, não pude me calar diante de uma afronta como esta, em plena quarta-feira.
Indo de encontro a todo o acúmulo dos movimentos sociais que defendem a legalização do aborto (mesmo sem estupro), o projeto reduz ainda mais as possibilidades do procedimento legalizado, sugerindo que as mulheres grávidas em decorrência de estupro tenham a “oportunidade” de garantir os direitos de seu filho, cobrando os deveres do estuprador.
Trocando em Miúdos, o Estado pagaria para estas mulheres optarem pela maternidade, concedendo o que tem sido apelidado pelas feministas como “bolsa-estupro”: um salário mínimo para as vítimas esquecerem-se da violência brutal.
Farei um grande esforço para conseguir organizar minhas idéias em uma opinião esclarecedora, concisa e equilibrada sobre a questão. Diante da honesta ira que sinto, entretanto, não sei se será possível.
Vamos lá. Este papo de quem veio primeiro, ovo ou galinha, é velho demais e já não tem mais validade em um suposto Estado Democrático de Direito. Este mesmo Estado Democrático de Direito reconheceu, em 1988, as principais designações e atribuições da pessoa humana, no trecho em que infere sobre “Direitos e Garantias fundamentais”.
Destacarei aqui alguns dos itens que mais me chamaram a atenção, pois, trazem uma gama de ironias ao nosso debate:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Em uma sociedade justa, estes deveres/direitos elementares seriam – inequivocamente – cumpridos e representariam, hoje, uma real ameaça ao PL 478/2007. No entanto, é a não-rigorosidade com que se encara estes princípios básicos no Brasil é o que legitima a elaboração de um projeto como este.
O primeiro item poderia ser até piada, se estivéssemos em uma mesa de bar, na Terra do Nunca. Desde que o mundo é mundo, sabemos que não é este o andar da carruagem e as opressões de gênero são caracterizadoras de todas as linhas e entrelinhas por onde a humanidade vem escrevendo sua história.
O terceiro item dialoga com todas as mulheres, de maioria negra, que morrem diariamente ao fazer o procedimento clandestino de abordo; ou que vivem sendo humilhadas e maltratadas pelos companheiros e pais dos seus filhos; ou simplesmente que sacrificam suas vidas pessoais e profissionais para cuidar de crianças que não escolheram gerar.
Para tratar do item “VI”, devo acrescentar que o PL 478/2007 está sendo sustentado até às últimas conseqüências pela Bancada Evangélica. Este perigoso e eminente segmento da sociedade brasileira tem conseguido, a partir dos espaços institucionais que ocupam e da população de fiéis que alienam, cercear a laicidade Estado Brasileiro e a liberdade religiosa de seus cidadãos e cidadãs.
O Item “X” muito me lembra os primórdios do machismo. Durante um curto período de tempo, na pré-história, a sociedade tinha um caráter matriarcal – pois a mulher era considerada uma misteriosa geradora da vida e, até então, o homem não sabia que também era responsável pela gestação.
Quando a ficha caiu, aí o bicho começou a pegar para o nosso lado e nunca mais parou. Passamos a ser encarada como templo de propagação da raça humana e, mais tarde – como apontaria F. Engels – nos tornaríamos em útero gerador de trabalhadores e trabalhadoras do Estado Burgês.
Nenhuma constituição precisou legitimar isto, para que acontecesse. Tornou-se uma herança cultural, cujas gerações trataram de passar umas para as outras, com perfeita eficiência.
Desde então, nós, mulheres – templos, úteros e seres humanos – tentamos convencer a humanidade de que algumas coisas estão erradas. Que queremos liberdade sobre o nosso corpo, sobre a nossa vida, além de gozar dos bens materiais e naturais como todo mundo.
A discussão em torno da subjetividade – existente ou não – do feto, embrião, da barriga ou do que quer que seja, perpassa, invariavelmente, por um Direito anterior, superior e inalterável, que é o da vida das mulheres. Este direito foi negligenciado por muito tempo, por muita gente, mas “daqui para frente, tudo vai ser diferente”.
O Movimento Feminista, as organizações de Esquerda, a Juventude, os progressistas, militantes e qualquer cidadão e cidadã dotados de discernimento estão convidados a esta reflexão. Estão convocados a sair nas ruas e redes para resistir à aprovação do Estatuto do Nasciturno.
Tenho certeza que a Presidenta Dilma irá vetar esta idéia anacrônica, esquizofrênica e paleolítica, pelo que conheço de sua sensatez política. Mas é imprescindível que a sociedade compreenda e debata o movimento conservador, machista e genocida que se esconde por traz deste projeto de Lei.
Bruna Rocha é militante da Marcha Mundial de Mulheres.
Referências
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo 2 – Experiência Vivida. São Paulo: Divisão Européia do Livro, 1967, p. 9-67;
CONSTITUIÇÃO Brasileira. TÍTULO II: Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I: DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVO;
MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva,1988.
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