Sou movida a desafios, eis a frase de minha vida! Não será diferente na escrita deste texto. Quem sabe, em vez de uma escrevivência, esteja realizando uma oralitura, visto minha escrita nascer do devir e fluir com as marcas do coração. Não quero acordar os da casa grande de seus sonhos injustos. Quero focar nos meus sonhos justos e ampliar as brechas para as irmãs, por isto a oralitura me agrada mais.
O desafio foi da malunga Giovana Xavier “Ao invés de dar visibilidade aos textos alheios, escreva o que te fortalece e inspira” foi mais ou menos assim o tatuar de sua provocação de rememorar minha vida universitária como futura Matemática que não cheguei a ser. O que esteve pelo caminho? Como nossos sonhos são ceifados pelo discurso da branquidade nociva? Voltarei a este ponto ao longo de meu caminhar, por considerá-lo a chave mestra de inúmeras trajetórias educacionais de mulheres negras. As que vi de perto e que serão narradas aqui como irmãs de um tempo que deveria ser pretérito, mas continua presente e perfeito aos privilégios brancos.
Como ponto de partida, narrarei meu janeiro, mês de nascimento e celebração da vida. Só que não tão assim. Foi um mês de superação de paradigmas angustiantes, impostos pela temerária elite que ocupa o poder nestas terras golpistas: sem salário de dezembro, férias e décimo terceiro, acompanhei o desespero de colegas da educação básica e a perda do que nos tornam únicas: a esperança. Poderia ter entrado na onda que avassala minha rede social de educadoras. Só que não sou dessas! Sou de levantar sacudir a poeira e dar a volta por cima. Sem salário, sem discurso elaborado contra o que está por aí, resolvi celebrar e encontrar as amigas nas brechas desta cidade plural e complexa, daí sua belezura. Fortalecendo-nos, nos tornando a mudança que queremos para o mundo. Dizendo sim ao amor e ao encantamento com o divino em nós. Sendo divas e encontrando-as antes das imagens postadas nas redes.
Como sermos professoras sem esperança? Como conquistarmos espaços sem o vislumbre do dizer sim aos sonhos de sermos o que desejarmos?
A data da largada, 06 de janeiro, Dia das Rainhas Magas, transgressão inventada pela grande ancestral Azoilda Loretto da Trindade, inspiração de todas as que sonham ser e são nas redes de mulheres negras, onde estou, e em sua segunda temporada. Tem sido ao longo dos últimos oito anos, um encontro de almas femininas, onde há espaço para o afetar e ser afetada sem receios, sem portas fechadas às múltiplas magas presentes. Brilhamos cada qual do seu jeito, todas damos mimos e somos mimadas com comes e bebes, uma poesia, um segredo de família, uma força que nunca morre, herdada da vó que veio da seca ou da escrita de nossas autoras negras. Tem sido assim, como um segredo que se guarda no sobrado de mamãe, debaixo d’água. Nesse dia, concretizei o lugar de bell hooks em mim: podemos sim, aprender a viver de amor e ensinar o ato revolucionário do eu te vejo, você existe!
Preparada por esse ritual anual, vi-me em múltiplas imersões de afeto: no cinema, no teatro, no bar, no lar, no mar. Do teatro, temos o texto lacrador da pretadotora que escrevendo em primeira pessoa, me ensina a arte de se chegar ao topo da montanha sem o vislumbre do precipício, pois nesse topo estaremos subindo de mãos dadas umas com as outras.
Quero falar! Falar do cinema e do candidato ao Oscar “Hidden Figures”, cuja tradução “figuras escondidas”, recebe por aqui o nome de “Estrelas Além do Tempo”.
Sobre o contexto histórico do filme, tem o post no Razões para Acreditar. A partir dessa narrativa fílmica quero abordar nossas trajetórias e as chaves mestras: Katherine Johnson e suas amigas Mary Jackson e Dorothy Vaughn, três matemáticas negras que, enfrentando a branquidade em sua luta pela preservação de seus privilégios, ensinam-nos que o foco está em nós e nos nossos passos, vindos de longe, mas por aqui ainda invisibilizados por uma educação racista, machista e elitista. A genialidade dessas mulheres com os números e o conhecimento dos limites e possibilidades do racismo americano, tornaram-se imprescindíveis para a conquista do respeito e fortalecimento das disputas de lugares sociais destinados aos brancos, não tão geniais assim. Mesmo quando a narrativa tenta focar no ponto de vista dos homens brancos que percebem a “garota esperta” Johnson e tentam nos fazer crer que a cor de sua pele é secundária, diante da missão da NASA, a plateia branca presente ao pré-lançamento no Village Mall, o shopping das denúncias racistas, nos desqualifica. Dizem-nos: aqui não existe isto não aos risos em uma das primeiras cenas de segregação do filme.
Estar nesse lugar de privilégios, acompanhada de uma irmã, historiadora negra e jovem, educada para a excepcionalidade, lutando como eu, para sermos visíveis e nos nossos termos me rememorou minha trajetória acadêmica e o porquê da esperança no ato de viver de amor.
Lembrei-me de meu primeiro dia de aula, na sala de CVGA, Cálculo Vetorial e Geometria Analítica, do curso de Matemática da UFRJ, quando ao ser inquirida de onde vinha, me vi sendo a única negra e egressa de escola estadual. A professora branca, olhando-me nos olhos dizia à turma: “Aqui nivelamos por cima. Quem não tiver base vai dançar”. Este comentário, reforçado pelo do professor de Instalações Elétricas, de meu segundo ano do Colégio Estadual Visconde de Cairú, que nos dizia que não passaríamos no vestibular, pois “não tínhamos base para a área de exatas” e que podia ser que as meninas conseguissem “caso prestassem vestibular em Letras” para ver se conseguiam um marido da Engenharia, foram meus contatos adolescentes (18 e 16 anos, respectivamente) à força com os que têm o poder de nos tirar os sonhos.
Isso, aliado à necessidade de estar no mercado de trabalho e não ter sido criada para sonhar de acordo com minha inteligência, abriu os caminhos de outras formas de circular na academia e me tornar uma trabalhadora e estudante numa universidade edificada para atender aos que têm recursos para vivenciar seus sonhos. A Nós outras os lugares subalternizados e a fragilidade do medo. O medo de não sermos capazes. Meu vestibular de Matemática de 1981, super concorrido, não foi suficiente para que eu acreditasse que os números poderiam ser minha vida. Abandonei tudo e fui tentar entender o que as Mulheres Negras da NASA já sabiam: temos que estar juntas, acreditando umas nas outras e abrindo portas para que todas que desejarem passar, o façam e bem. Depois de andar pelo curso de exatas, buscando apreender seus significantes, fui resignificar minha história na graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde aprendi que nossa história só pode ser contada pelos nossos e em nossos próprios métodos.
Talvez seja assim, que a autora negra Margot Lee Shetterly do livro Hidden Figures – The American Dream and the Untold Story of the Black Women Mathematicians Who Helped Win the Space Race (Figuras Escondidas – O Sonho americano e a estória não contada das mulheres negras matemáticas que venceram a corrida espacial*) tenha pensado antes de vender os direitos autorais para Hollywood, inspirando o filme Hidden Figures, cuja adaptação para o cinema foi de um casal branco. Senti isto, em muitos momentos da exibição da película.
No entanto, está lá o protagonismo negro, ancorado em uma comunidade de classe média que nos encanta com suas histórias de luta que também são nossas, negras e negros em diáspora, e cuja força identitária cria mecanismos de representatividade, segundo nossos próprios termos.
O filme é um convite ao mergulho na formação que recebemos nas escolas públicas e nas universidades que frequentamos. Provocam-nos à criação de redes de apoio e incentivo à insistência de ter sonhos. E nos convida a olhar com mais profundidade os porquês dos fracassos escolares de meninas e meninos postos em situação de risco em escolas que insistem em não reconhecer nossa diversidade.
O filme estreia no dia de Iemanjá, que com sua força, segue fazendo emergir nossas histórias negras, enterradas pelo racismo. Odoyá!
*Tradução livre Blogueiras Negras