Dia desses fazendo a chamada do 8o ano deparei com o nome de um aluno o qual não lembrava da fisionomia de jeito algum. Rapidamente perguntei para a menina sempre de olhos vibrantes que estava próxima a mim: – Quem é “fulano”? ela rapidamente respondeu: – Aquele moreninho! Quaisquer outras descrições dela não me faziam de jeito nenhum lembrar desse aluno “moreninho”. Sala com 35 alunos, na aula da turma anterior apenas um dos alunos conseguiu tomar minha tenção por mais de 20 minutos do tempo de aula por querer chamar atenção e não permitir que a aula continuasse.
De repente, me lembro: – “O fulano”, claro, mas ele é preto não moreninho “fulana”. Ela arregala o olho pra mim, e eu repito: – Sim, ele é preto, negro (aliás de pele escura). Nesse momento uma outra aluna também negra me fala: – Professora, ela ficou com medo de você achar que ela era racista dizendo que ele era preto. – Não, pelo contrário, eu digo, qual o problema de dizer que ele é preto, se de fato ele é?
Não é a primeira vez que me deparo com esse tipo de situação perante as crianças. A todo momento qualquer oportunidade de apagar, ou “sublimar” a identidade negra é sempre encarada como benéfica. Vejo isso nos cabelos alisados de minhas alunas, na valorização da beleza das meninas e meninos que são brancos ou tem a pele mais clara, no discurso dos meus alunos, que ainda sem consciência do que fazem acham que é elogio chamar um colega negro de moreninho.
Toda vez que me deparo com essas situações, eu problematizo. Raramente faço isso na internet, no bar, no lab da universidade, adultos que cismam não ser racistasme cansam. Mas quando são as crianças…lá vou eu falar. Acho essencial fomentar estas discussões entre crianças e adolescentes, que ainda estão formando seu caráter. Falo da beleza dos cabelos crespos (isso é essencial para a construção da auto estima das meninas), da importância em reconhecer nossas falas racistas do cotidiano, da importância em dizer: eu sou negro!
Mas eis que hoje, passeando pelo facebook vejo uma criatura comentando o vídeo de um menino negro ironizando as dificuldades do privilégio branco. As falácias dela incluíam desde racismo reverso até “não existem brancos no Brasil, somos todos uma mistura, uma mesma raça”. Nestes momentos eu paro, penso, e por muitas vezes me acho errada ao não me colocar. Precisamos sim falar sempre e mais. Não sei se a pessoa em questão mudaria algo de seu ponto de vista envenenado de ignorância, mas quem sabe outra pessoa. Outra pessoa ainda disponível para avaliar seu ponto de vista. Outra pessoa disposta a refletir sobre outras perspectivas diferentes da sua realidade.
Precisamos falar que no Brasil existem brancos e negros sim! E por isso a leitura social das pessoas ainda faz elas serem discriminadas, ou privilegiadas. Não existem diferentes raças biológicas quando estamos falando de seres humanos, mas existem diferentes raças quando nos atemos a leitura social que as pessoas fazem das características físicas umas das outras, e estas são classificadas em diferentes grupos étnicos. O que é maravilhoso, pois podemos observar a belíssimadiversidade que a evolução produziu em uma só espécie que é o ser humano. No entanto é justamente esta diferença na leitura social das pessoas, enquadradas em diferentes etnias que leva a discriminação.
No momento que a gente nega a existência dessas diferenças dizendo que no Brasil não existem brancos, que somos “moreninhos” estamos cometendo um grande equívoco e ao mesmo tempo diminuindo características de grupos étnicos que as pessoas apresentam. É por exemplo o que fazemos quando para “sublimar” características de afro-descendentes chamamos uma pessoa negra mais clara de “moreninha” como se isso fosse um elogio. Não consigo pensar em nenhum exemplo onde se “sublimem” características de pessoas brancas.
Até o momento a teoria mais aceita para o surgimento da espécie humana é de que derivamos de uma única espécie surgida no continente africano. Desta forma, podemos supor que, a partir de uma análise de material genético grande parte das pessoas do mundo apresentarão em seu genoma alguma parcela de traços genéticos africanos. Mas ter esta parcela de DNA africano não faz, por exemplo um americano branco neo-nazista ser lido como negro (https://jornalggn.com.br/…/neonazista-passa-vergonha-ao…). E o mesmo acontece aqui no Brasil, na África do Sul, na China. Desta forma a falácia do somos todos misturados do ponto de vista genético não funciona na prática.
Continuar batendo na tecla de que não existem raças no Brasil, somos todos misturados, ao invés de benéfica pode dar mais voz a pessoas que cismam em dizer que racismo não existe, que pessoas negras se vitimizam e que pessoas brancas não tem privilégios sociais e negar o racismo estrutural que foi construído no nosso país e ainda precisamos lutar muito para destruir. Podemos descender de marcianos verdes, se a minha cara tem um nariz grande, meu cabelo é crespo e o fato dele ficar pra cima incomoda as pessoas de alguma forma, eu sou negra, sou lida como negra e sou passível de racismo.
Se assumir como negro, falar que é negro, auxilia na construção da auto-estima e do entendimento de seu lugar no mundo, te coloca do lado certo para reafirmarseu lugar em uma sociedade que insiste em te deixar à margem. Vejo isso nas crianças, vi esse processo acontecer, ainda que tardiamente, em mim. Quem sabe falando mais também veja cada vez mais essas características nos adultos.
Crédito foto: AutumnGoodman on Unsplash