Desde que eu comecei a estabelecer relações acadêmicas com a branquitude, observo um discurso me exigindo calma quando eu já estou calma. Sempre é diante de um questionamento que eu faço sobre condutas que reiteram racismo ou condutas que exigiram de mim uma resposta humana diante de uma rotulação pré-concebida por crenças de quem eu sou.
É sabido para qualquer criatura que convive comigo que eu sou um ser humano falante, a maioria do meu tempo eu estou trocando ideias sobre tudo que for e isso é com qualquer pessoa que me dê a liberdade para isso. Não importa a proximidade, eu me abro e ofereço ao questionamento, que para mim é um aspecto positivo de qualquer interação. Em alguns dos diálogos que eu tive essa semana, online (talvez, seja esse suporte de comunicação que cause isso), eu fui lida constantemente como alguém que não estava em pleno estado de calmaria, a mim era solicitada calma constantemente, algo que me aborrecia, contudo, não me tirava ainda do meu estado calmo.
Pessoalmente, a minha fala é sempre recheada de sorrisos, até mesmo quando eu falo algo tão dolorido. Aprendi que se eu não sorri, o outro, sempre branco, irá me olhar como um ser humano agressivo. Queria ter o direito de assumir a minha ira diante do racismo e falar sobre ela na intensidade dos sentimentos que ele me exige, porém, a docilização dos nossos corpos é feita de maneira tão cordial nos diálogos que nos exigem um semblante sereno.
A situação mais recente nos prova isso (o caso do trabalhador, entregador, que foi atacado por uma mulher branca), nem o direito de reagir a mais cruel violência temos, isso independente de sermos homens ou mulheres, por sermos pretos, o medo de sermos lidos com estereótipos nos deixa mais vulneráveis as violências, psíquicas e físicas. É difícil ser objeto das projeções brancas sobre nós e que são nutridas por processos de silenciamento, disfarçados de outras coisas: profissionalismo exacerbado, pseudoengajamento, por exemplo.
O BBB já nos mostra que a branquitude em termos de comportamento tem licença para tudo, quando são apontados em seu racismo se vitimizam e começam a exercer em seus discursos estratégias de deslegitimação da nossa fala do tipo “você fala difícil” ou “você exige muita atenção”.
É estressante, academicamente, conviver com pessoas que não estabelecem a escuta e conversam em imperativos como se quisessem exercer sobre nós apenas a autoridade, enquanto dizem ser nossos aliados ou estudiosos das nossas questões. Claro, que toda convivência há projeções de ambos os lados, por isso, em um mundo social como o nosso, perpassado por colonialidade, o diálogo sincero, sem dissimulações ou proteção de egos, é fundamental para se romper muros e evitar violências, conscientes ou não, sobre os outros, principalmente sobre minorias de poder, em específico, falo de pessoas pretas.
Ontem, eu quis correr, mandar a pós-graduação à merda, e começar a dizer tudo que eu penso quando a minha ira surge, uma ira epistêmica, pois eu preciso situar que a minha ira não me coloca numa condição de irracionalidade, só me desloca da naturalização dos padrões de comportamento da branquitude racista, por mais fofa que ela seja para si mesmo, não para mim.
Os nossos corpos – nos espaços onde produz e disputa qualquer coisa na ordem do poder, voz ou conhecimento – são frequentemente lidos pelo leque da subordinação. Se queremos conversar, somos rotulados como carentes, contudo, não é o carente dentro do que é posto na normalidade, e sim patologização. Se somos ríspidos, somos agressivos, e da mesma forma é levado para a lógica da patologização. Só depois do caso da psicanalista branca que falou que o monstro de Blumenau que entrou numa creche e matou crianças tem o perfil amoroso e carinhoso, eu entendi que essas leituras dentro dos espaços acadêmicos também tem a mesma origem, a do racismo científico que contribui com o racismo epistêmico.
Não adianta o quão doce nos comportamos, nossos corpos são lidos de forma distorcidas e nossas vozes são silenciadas. É inerente a mim a escuta quando eu sou obrigada a convivência, quando isso não me é oferecido, eu fecho as portas para qualquer possibilidade de construção coletiva, com pessoas brancas, que visem o combate a colonialidade e do racismo.
Há pessoas brancas bacanas e de fato parceiras nas questões que aponto aqui. Essas pessoas ficam ofendidas com a nossa desconfiança em relação à aliança que oferecem, contudo, até a nossa desconfiança é legítima, sim, em uma sociedade em que mecanismos de opressão evoluem forçando naturalizações e se apropriando dos discursos de resistências. Talvez isso ainda aconteça por que como sociedade, já começamos a falhar desde o momento em que corpos foram tratados como sem alma. Por isso, quando alguém me solicita, normalmente, são mulheres brancas e professoras universitárias, eu sempre digo: “eu tô calma, professora”. E por está bem calma…pensativa, eu escrevo este texto.