Feminismo Interseccional: um conceito em construção

O FEMINISMO INTERSECCIONAL, como o próprio nome sugere, diz respeito à intersecção entre diversas opressões: de gênero, raça e classe social. Historicamente, no início da primeira onda feminista, nos anos 20, o termo feminismo englobava apenas a opressão de gênero e atendia exclusivamente às reivindicações das mulheres brancas de classe média, desconsiderando as necessidades da classe de mulheres trabalhadoras e de classe baixa, ou seja, as mulheres negras, que eram invisibilizadas dentro desse movimento.

O Feminismo Interseccional é de extrema relevância atualmente porque auxilia na organização das pautas das mulheres negras levando em consideração as suas reais necessidades, já que elas sofrem um tripla opressão: racismo, machismo e preconceito de classe social. Sabemos que as opressões a que as mulheres negras são submetidas vão muito além de seu gênero, pois além do machismo enfrentam o racismo, uma forma de opressão extremamente violenta, mas que é velada em nossa sociedade e nos atinge de forma não só a minar nossa autoestima, nos levando a rejeitar nossos corpos, mas impondo barreiras à nossa presença em espaços de poder.

O surgimento do Feminismo Interseccional tem como algumas de suas principais figuras as estudiosas Kimberlé Crenshaw, Audre Lorde e Bell Hooks. No Brasil, é importante destacar a figura de Lélia Gonzales.

Crenshaw, professora de Direito, cunhou o termo Feminismo Interseccional na década de 80, embora tenha admitido que mulheres negras já falavam sobre essa interseccionalidade de opressões muito antes dela. Ela considerou importante cunhar esse termo porque as leis antidiscriminatórias tratavam de forma diferente aspectos como raça e gênero, sendo que na realidade ambos estão inter-relacionados e deveriam ser levados em consideração nas decisões jurídicas que envolvesses pessoas com essas especificidades.

Audre Lorde era negra lésbica, mãe, escritora e uma voz isolada dentro do movimento feminista. Lorde foi uma das fundadoras do movimento feminista negro e uma crítica fervorosa do movimento feminista branco, que restringia a opressão contra as mulheres apenas a seu gênero e desconsiderava aspectos como classe social, raça, idade e sexualidade, por exemplo. Lorde escreveu artigos sobre questões feministas e sua obra literária tem como temas principais amor, traição, classe social, raça, sexualidade e gênero.

Bell Hooks é feminista, ativista social e autora de diversos livros e ensaios. Em sua obra, fala sobre questões de gênero, raça e classe social. Cresceu em meio a um ambiente de segregação e isso marcou profundamente sua obra. Uma de suas frases mais conhecidas é “Eu sou uma feminista negra. Eu reconheço que meu poder e minhas opressões resultam de minha negritude e de meu gênero, portanto minha batalha nessas duas linhas de frente são inseparáveis”.

Lélia Gonzales foi professora, antropóloga, tradutora e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial na cidade de São Paulo. No Rio de Janeiro fundou com outras mulheres negras o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras. Uma de suas frases famosas é “O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a polícia formalmente constituída (…) Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos habitacionais, cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos dos dias de hoje. O critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.” Essa fala é aplicável ainda hoje em dia, basta ver a situação dos jovens negros em situação de vulnerabilidade social, em sua grande maioria moradores de periferia e vítimas do extermínio da juventude negra.

Lélia Gonzales foi uma das precursoras do movimento feminista negro e nós, como mulheres negras, temos o dever de dar continuidade ao seu grandioso trabalho, nos empoderando enquanto mulheres negras e contribuindo para o empoderamento de outras mulheres, ocupando espaços em que não somos benvindas, ou seja, espaços de poder, reivindicando nossos direitos, denunciando e lutando contra o extermínio da juventude negra, contra o racismo institucional que visa barrar nosso acesso à academia e a espaços políticos, e contra um sistema opressor que insiste em nos manter no porão da sociedade.

Referências

http://www.geledes.org.br/a-poesia-de-audre-lorde/#gs.bFe_U=k
http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/
http://www.egs.edu/library/bell-hooks/biography/
http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/176/artigo279488-1.asp/

 

Imagem destacada: Audre Lorde desenhada pelo artista Kelsey Hunterd, isponível no site:  http://ledbaltimore.com/

9 comments
  1. Obrigada por explicar. Eu sou feminista de família (4a. geração desde minha bisa que deu um pé no rabo do marido abusador em 1923, pegou os panos de bunda e minha avó e foi ser operária divorciada em Budapest) e nunca tinha ouvido falar nesse termo, muito embora seja o que eu defendo, ou seja, que mulher tem que ter igualdade de direitos com os homens, independente de cor, religião, cis ou trans, pobre ou rica, etc.

  2. Oi Patrícia! Obrigada pelo artigo. Só pra avisar que ali no final do terceiro parágrafo tá escrito “Zélia Gonzales” e não Lélia.. Abraço!

  3. Olá. Primeiramente, parabéns pelo post, excelente abordagem e que respondeu algumas dúvidas minhas em relação ao feminismo interseccional. Porém, ainda há alguns tópicos que eu fico receosa de me posicionar. Antes de tratar a respeito, quero deixar claro que ainda estou estudando bastante, e que portanto, sou leiga no assunto “feminismo”, newbe, cheeeeia de dúvidas. E também, deixar claro que sou branca e ciente dos meus privilégios raciais…
    Minha dúvida pode ser ridícula, já te peço perdão… mas até onde posso me impor ao tratar de intersec sendo branca? Eu entendo a necessidade do feminismo intersec, compreendo que o movimento feminista branco invisibiliza a voz de feministas negras, é por isso que abaixo a cabeça para vocês, já que eu não sei como é na pele, embora, no fundo do coração, eu entendo que a luta, infelizmente, não é a mesma e faço minha parte de me manter quieta quando mulheres negras se impõem. É por essa razão que eu tenho essa dúvida, e em parte, medo de tentar entrar no assunto com uma feminista negra. Eu evito, exatamente por não me achar no direito de inibir a voz de vocês, que já é coibida há séculos por meus antepassados e indiretamente, por mim mesma. Novamente eu te peço desculpas, mas ninguém nasce sabendo tudo, né? Seria até mais fácil pra mim se você pudesse me dar um exemplo de até onde seria o correto, o bom senso de uma feminista branca discutir, trocar ideias, com uma feminista negra, até pra eu saber quando me impor ou me calar, porque meu objetivo é entender e praticar o correto, me colocando no meu lugar e dando espaço pra quem realmente precisa.

    1. Eu me identifiquei muito com esse comentário, e gostaria muito de saber a resposta para a pergunta “mas até onde posso me impor ao tratar de intersec sendo branca?”, pois é uma dúvida que também tenho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

You May Also Like
Leia mais

Bem vindos ao Brasil colonial: a mula, a mulata e a Sheron Menezes

Sim, sabemos que 125 anos se passaram e a escravidão acabou, porém as suas práticas continuam bem vindas e são aplaudidas por muitos de nós na novela das nove e no programa do Faustão, “pouco original, mas comercial a cada ano”. No tempo da escravidão, as mulheres negras eram constantemente estupradas pelo senhor branco e carregavam o papel daquela que deveria servir sexualmente sem reclamar, nem pestanejar e ainda deveria fingir que gostava da situação, pois esse era o seu dever. Hoje nós, mulheres negras, continuamos atreladas àquela visão racista do passado que dizia que só servíamos para o sexo e nada mais.
Leia mais

Uma bunda na foto vale mais que uma arara!

Ao ler os comentários sobre o episódio dessa chamada de brasileiras para casamentos com gringos através do site do Huck, só consigo pensar em como nós brasileiras ainda somos vistas no nosso próprio país: mercadorias com bundas do tamanho P, M e G. Não sou macaca, minha bunda não é internacional, Brasil não é cartão postal de bundas e a mulher brasileira não esta à venda!