No dia 02 de junho de 2018, foram celebrados os 20 anos ininterruptos da Sambada de Coco do Guadalupe – Olinda – PE, evento cultural gratuito, realizado todo primeiro sábado de cada mês, pelo Ponto de Cultura Coco de Umbigada, liderado por Mãe Beth de Oxum e pelo Mestre Quinho Caetés.
Podemos pegar a trajetória do grupo Coco de Umbigada e a atuação de Mãe Beth de Oxum como uma amostra para analisar porque a colaboração histórica das mulheres negras, que chamarei aqui de Feminismo Negro brasileiro demorou tanto tempo para ser reconhecido no Brasil. O Feminismo Negro brasileiro raramente foi registrado, documentado, teorizado. As histórias protagonizadas pelas mulheres negras brasileiras sempre foram transmitidas através da oralidade. As nossas histórias sempre foram contadas e recontadas de geração para geração, de avó para mãe, de mãe para filha.
A transmissão de saberes e fazeres das mulheres negras, um dos segmentos mais invisíveis, anônimos, silenciados e excluídos deste país, acontecia desta maneira porque as mulheres negras sempre tiveram maior dificuldade de acesso e permanência na área da educação, assim em outras áreas e este é um dos motivos pelo quais nossas histórias não são contadas na escola, nem constam nos livros.
O meu lugar de fala é de mulher negra, pois assim me reconheço. Este é o meu pertencimento e identidade, mas também se incluem a mulher índia, a mulher cigana, a mulher não-branca de forma geral. E mesmo ciente de que as mulheres brancas também sofrem as opressões do sistema machista e patriarcal, aqui se faz necessário esse recorte.
Assim sendo, aproveito a ocasião para contar e também registrar uma história.
Eu já conhecia a Beth de Oxum do cenário artístico-cultural pernambucano. Na década de 90, ela era zabumbeira da lendária cirandeira Lia de Itamaracá e já se destacava por ser uma das poucas mulheres a se “atrever” a ser percussionista (e uma exímia percussionista!), área musical tradicionalmente e predominantemente masculina, onde as mulheres não eram benquistas, por motivos de ordens diversas, os quais não vou me aprofundar aqui (quem sabe, em uma próxima ocasião?).
Me aproximei da Beth de Oxum, nos meados dos anos 2000, porque integramos uma caravana que levou alguns grupos culturais de Pernambuco para participar de um festival de cultura no estado de Goiás. Na época eu era integrante de um grupo cultural aqui do estado de Pernambuco e participei do processo de pré-produção da viagem, trocando e-mails e falando com Beth por telefone algumas vezes.
A viagem Pernambuco – Goiás dura em média um dia e meio. Não é fácil. As poltronas são desconfortáveis. O banheiro sempre exala um mau cheiro. À noite tem sempre uma galera rindo e conversando alto sem deixar os demais dormirem. Enfim. Não é fácil. Mas durante essas 36 horas, eu e Beth trocamos as primeiras ideias. Dentre várias coisas, ela falou que conhecia meu trabalho de produção cultural e que estava com a ideia de produzir o primeiro CD do Coco de Umbigada. Me perguntou se eu já tinha ido na Sambada de Coco do Guadalupe. Eu respondi que já tinha ouvido muito falar e falar bem, mas ainda não tinha ido. E combinamos de agendar uma reunião assim que voltássemos para Pernambuco.
Se Beth de Oxum já chamava atenção como zabumbeira, o convívio com ela e sua família durante a semana que passamos em Goiás, só fez aumentar a minha admiração e simpatia. Sempre acompanhada pelas suas crianças – Oxaguian, Ialodê e Mayra (a Ynaiê, ainda não era nascida) – Beth estava sempre conversando sobre cultura, sobre candomblé, sobre a luta dos povos tradicionais. Beth estava muito feliz, muito resplandecente. Acredito que por conta da energia das várias cachoeiras existentes na localidade. Aquela região é a nascente dos rios do Brasil e Oxum é a orixá das águas doces.
Quando retornamos para Pernambuco, ela me telefonou convidando para uma roda de conversa que aconteceria no Ponto de Cultura. Estavam presentes, a Mãe Lúcia de Oyá, o Índio Matinho, o Mestre Pombo Roxo (já falecido), a Mãe Ivanise de Xangô (também já falecida), o Mestre Zeca do Rolete, a Mestra Aurinha do Coco. Também estavam as crianças, os jovens, estudantes e professores universitários, jornalistas. No final, foi realizada uma pequena roda de Coco, onde todos cantaram, dançaram, brincaram. Foi maravilhoso! A partir desse dia, sempre que possível, eu frequentava o Ponto de Cultura Coco de Umbigada e a participava das atividades e eventos promovidos.
Certa vez, em um momento bem difícil da minha vida em que sofri uma ferrenha perseguição profissional, pois alguns grupos de cultura popular liderados por homens não concebem e nem admitem a autonomia da mulher negra em relação ao mercado de trabalho e exigem uma relação de trabalho em regime de exclusividade, praticamente voluntária, ou seja, sem oferecer a justa e devida contrapartida financeira. Como não aceitei essa imposição, usaram da injúria, da calúnia e da difamação para vários grupos culturais e gestores de órgãos públicos das cidades de Recife e Olinda/PE para desqualificar meu trabalho e minha pessoa, pensando que dessa maneira me deixariam sem saída e me fariam bater de novo à porta deles.
Só que Oyá não tem medo, tem asas (autoria desconhecida). E mesmo sem vislumbrar uma maneira concreta, eu tinha confiança de aquela fase horrível iria passar, era apenas uma transição para algo melhor. Foi um período muito difícil pois eu fiquei alguns meses sem trabalhar. Me lembro de quando chegava em alguns locais públicos ou em alguns eventos, várias pessoas me evitavam e/ou se esquivavam, temendo possíveis represálias. Além das dificuldades financeiras, eu tive que lidar com os sentimentos de solidão, de tristeza e com a decepção. Doeu bastante, descobrir que para aquelas pessoas, que eu achava que eram minhas amigas, eu era apenas útil, conveniente.
Apesar de eu não ter sido acusada formalmente, as maledicências infundadas tem um efeito pesado, desastroso. Ampla defesa e contraditório são institutos jurídicos bem distantes na vida cotidiana de uma mulher negra. Se um homem diz (leia-se inventa) algo sobre você, aquilo passa a ser uma verdade inquestionável. Ninguém pergunta qual a sua versão dos fatos, ninguém contesta ou exige provas. Se passa por cima de um princípio básico: quem acusa, é quem deve provar. Se você é uma mulher negra, muito provavelmente em algum momento da sua vida, você vai pagar por algo que você não fez, sem ter sequer o direito de defesa.
A primeira pessoa que me telefonou para saber o que estava acontecendo foi Beth de Oxum. Eu respondi que não sabia ao certo. Que ninguém tinha me falado nada abertamente. Não houve uma reunião, não houve comunicado oficial. Falei que fiquei sabendo que estava “fora” dos grupos por meio de comentários evasivos de algumas pessoas. E Beth falou que eu não me preocupasse mais. O Coco de Umbigada estava de portas abertas e tinha lugar pra mim. Disse que o Coco de Umbigada naquele momento não podia me contratar, pagar um salário à altura do meu trabalho, mas que desenvolvia ações concretas – com a escola pública, com os mestres griôs (mestres de cultura popular e/ou tradicional, de notório saber), com as crianças, com a comunidade. “Acredite no Coco de Umbigada. Nós vamos girar a chave da autonomia!”.
Beth me propôs uma parceria. O Ponto de Cultura arcaria com os custos de Transporte e alimentação e junto com os outros colaboradores da equipe iríamos desenvolver ações, criar estratégias, elaborar projetos, captar recursos. Enfim, iríamos vivenciar e trabalhar com a arte e com a cultura. E assim fizemos. O resultado foi que no ano de 2008, o Ponto de Cultura Coco de Umbigada foi contemplado em vários editais públicos da época e também ganhou muitos prêmios.
Beth de Oxum colocou em prática o distante e utópico atualmente e exaustivamente comentado conceito de “sororidade”, utilizado para descrever uma relação de irmandade entre mulheres. Naquele tempo, a gente nem sabia que existia essa palavra. Hoje, em muitas ocasiões continuamos a nos questionar se o conceito existe para além dos discursos politicamente corretos. Beth de Oxum foi empática, foi solidária, foi amiga, foi humana.
Com Beth, eu comecei entender a Comunicação como um Direito Humano. Por meio da Rádio Amnésia, rádio livre que vai ao ar diariamente e que traz a proposta de democratização da informação e de difusão de toda uma produção musical que não encontra espaço na mídia convencional. A oratória poderosa e contundente de Beth de Oxum, me fez entender porque o direito de fala é negado às mulheres negras. “Comunicação é poder.” E na sociedade, branca e machista, poder não é pra nós.
Foi com Beth que ampliei as possibilidades do diálogo entre a tradição e a modernidade, participando das ações do Cineclube Macaíba, que promove a identidade e o pertencimento através do audiovisual, do telecentro, dos games. Foi com Beth que constatamos que a forma como a cultura é trabalhada como conteúdo pedagógico na escola pública está obsoleta e deve ser repensada. A articulação em redes. A dança e a música como conectores com a ancestralidade/espiritualidade. O protagonismo feminino. A auto-estima. O empoderamento. O pertencimento. A identidade. E tantas e quantas outras coisas.
Pra mim Beth de Oxum é uma de nossas maiores intelectuais. Porque intelectual não é só aquele que pensa os assuntos nos espaços acadêmicos, mas é toda pessoa que reflete criticamente sobre a sua realidade e procura na prática transformá-la para melhor. Beth de Oxum foi uma das pessoas na qual me inspirei muito quando resolvi cursar Direito, porque advogado de direito, pode ser aquele que possui a carteira da OAB, mas advogado de fato, é aquele que defende os direitos dos que mais precisam, sem temer as consequências.
Talvez Mãe Beth de Oxum não saiba o quanto o seu exemplo nos ensina. O quanto a sua coragem nos inspira. O quanto ela nos representa. Beth de Oxum é para todas nós o espelho de Oxum, no qual todas nós nos enxergamos, nos reconhecemos, nos projetamos. Quiçá Mãe Beth de Oxum não tenha a real dimensão de sua importância nas nossas vidas. Nas vidas das mulheres negras.
Como pontuei no início, a contribuição das mulheres negras para a história desse país, chamada aqui de Feminismo Negro brasileiro, demorou a ser reconhecido, porque não era teorizado, não era documentado. Mas Mãe Stella de Oxóssi, autora de vários livros, uma das pioneiras a contar as histórias dos povos de matriz africana de forma escrita, sabiamente ensina, que estamos em outro tempo e esse tempo é agora.
Na celebração de ontem, Beth de Oxum homenageou várias pessoas que participaram de forma significativa dos 20 anos do Coco de Umbigada. Fiquei muito feliz e honrada em ser uma das premiadas e ganhamos uma linda caneca (ver foto). Na minha fala de agradecimento, contei um pouco dessa história que está aqui neste texto. Este foi o motivo pelo qual resolvi escrever essa história. Porque nós é que temos muito o que agradecer a nossa Mãe Beth de Oxum.