Por Cristiane Gomes para as Blogueiras Negras
Há algum tempo que estava querendo escrever sobre mim, minhas avós e ancestrais. Foi em uma noite dessas de verão que ouvindo as histórias na cozinha da Bisavó de meu filho juntamente com a tia bisavó, que iniciei e comecei a compreender a importância e a relevância das mensagens incutidas nas histórias que estas contavam para nós. Comecei a perceber o grande rol de ensinamentos e possibilidades de produção de reflexão a que eu era “submetida” com muito prazer (e ainda sou) quase que diariamente.
Talvez não percebesse por que isso já é costumeiro entre nossas famílias, a minha e a do meu companheiro, crescemos sendo ensinados por mulheres e homens, que através de seus contos, cantos e lendas nos passam conselhos valiosíssimos, e que ainda nos possibilitava imaginar, sonhar, brincar, prever as diversas situações, e principalmente nos preparar para o mundo fora de nossos territórios sincréticos, chamo assim nossos lares que são compostos de pessoas com doutrinas religiosas e estilos de vidas diferentes, porém com características em comuns muito especiais como a união a cumplicidade o respeito, o acolhimento aos “chegantes” (aqueles que freqüentemente vem para pedir conselhos, alimentos, apoio para alguma questão sentimental, aqueles que precisam de demonstração de amizade, instrução para alguma questão burocrática de vida) dentro de grandes pátios com árvores, grutas e um manancial de ervas e plantas para cada problema que tínhamos.
Lembranças da infância no Morro
Pensar em como me constituí como estudante consciente, militante, mulher negra e mãe, é fazer um passeio aos lindos momentos de aprendizado que percorrem a minha vida. Nasci e morei em lugar chamado Morro da Embratel, em Porto Alegre. No início lembro de minha avó fazendo os mais variados penteados e tranças em meu cabelo, ela dizia sempre que tinha que estar inovando no penteado, mas eu gostava de um o rabo de traças de lado, ela dizia “minha pretinha bonitinha”, “olhem a pretinha da vozinha como está bonitinha”. Vozinha, assim eu a chamava e às vezes ainda chamo, eu adorava aquele penteado me achava diferente e especial.
A vida era assim a comida era pouca, minhas roupas e calçados eram as que minha mãe trazia dos filhos e filhas das patroas dela, inclusive os brinquedos e material escolar, lembro que minha mãe dizia o seguinte: “ o fulaninho da dona cicrana não usa todo o caderno, ao final do ano eles colocam fora”. Minha mãe pegava os cadernos tirava as folhas usadas o que minha mãe recebia não possibilitava que ela comprasse todos os materiais escolares solicitados.
[…] mulheres dos segmentos populares, de modo geral, têm participação efetiva e extremamente importante no processo de transformação capitalista brasileiro […] para complementar a renda familiar, face aos baixos salários recebidos por seus companheiros. Esta situação faz parte de um ciclo de empobrecimento construído pela classe dominante em torno do trabalhador. Na medida em que as mulheres ingressam no mercado de trabalho, conservam os salários rebaixados, já que são empregadas em larga escala recebendo salários aindamais magros.
(FERREIRA)
Ela sempre dava um jeitinho, os sapatos sempre serviam, o máximo que se fazia era colocar um jornal para não ficar muito largo, e as roupas minha avó dava um jeito de diminuir ou aumentar. Os motivos que levam uma família negra a desacreditar na melhora de vida são muitos e às vezes fazem percorrer um caminho errôneo em relação à escolarização de seus descendentes, Ana Lúcia Valente diz que:
“Muitas crianças negras (as mais carentes em geral) são obrigadas a deixar cedo a escola para ajudar no orçamento familiar . Vão executar pequenos trabalhos: vender doces pelas ruas e feiras, engraxar sapatos, lavar carros da vizinhança.
Contudo ainda podemos visualizar a ascensão da comunidade negra em sua trajetória escolar, conforme Valente ,
[…]“há negros que ascenderam socialmente via escolarização[…]muitos conseguiram chegar a universidade. Com isso galgaram alguns degraus na hierarquia social. Curioso é que são esses negros que sentem crescer as manifestações de preconceito e discriminação raciais. Isso porque nesse nível vai se dar uma competição mais acirradacom os brancos na disputa e ocupação de posições.”
Caminhos escolares
Nessa fase da jornada, o Instituto São Benedito, instituição em que eu passava parte do dia, concedeu-me uma bolsa em escola particular, minha avó já havia se informado de como era a escola, e ela dizia que oportunidade assim não poderia perder, Petronilha Silva afirma que :
Cada estudante que vence, a família se realiza , a comunidade também. Educar-se para nós negros, não é caminho de realização individual. Toda a comunidade que representamos e da qual fazemos parte, se afirma, torna-se mais forte com a nossa realização.
(SANTOS)
Desde minha infância ouvia minha avó falando sobre como seria diferente se ela pudesse ter usufruindo de todas as oportunidades oferecidas atualmente, para ela meu sucesso significava vitória coletiva não só do nosso clã, mas de todos aqueles que de alguma forma se relacionavam conosco. Isso fazia com que eu me sentisse muito importante, pois sentia a expectativa dela em relação ao meu aprendizado na e para a vida.
A escola que anteriormente eu freqüentara não oferecia algumas disciplinas. Minha avó foi a uma loja e comprou um livro e uma fita cassete para eu aprender ou pelo menos ter noções da língua inglesa e depois ela juntou o dinheiro de umas oito faxinas para comprar minha primeira máquina de escrever. Após isso ela me levou a um terreiro, na época ela disse que era para eu ter força e não desistir de estudar e seguir em frente. Até então eu tinha um primo que me auxiliava nos temas mas ele faleceu muito cedo, jovem não poderia mais contar com alguém para me ajudar nos temas em casa. Precisei de alguém para me ajudar minha avó conseguiu uma outra prima, a Laci para ser minha professora particular e ela foi fantástica, foram meses de aulas auxiliares de matemática com Laci.
Nesta escola foi o lugar onde aprendi o que significava ter e ser e as diferenças deste verbos. Ao entrar para sala de aula a primeira aula foi de inglês. Eu estava na sexta série e até então nunca havia estudado com algum professor a “tal disciplina”. Mas consegui fazer os exercícios finais daquele dia, ainda bem que minha avó é uma pessoa precavida, pois logo ela tratou de prevenir as possíveis dificuldades que eu encontraria.
O racismo levou um tempo para ser reconhecido por mim, embora sempre fosse parte da minha vida, pois eu ainda não o identificava e nem mesmo o reconhecia. Como interpretaria algo tão complexo?, e também eu não tinha os instrumentos necessários para categorizar o que eu achava que eram “os meus conflitos” e “insatisfações de tratamento”, somente quando os apelidos começaram a tomar corpo, através das atitudes de alguns colegas, que comecei a identificar e reconhecer o tal racismo, o preconceito. A criatividade de por apelidos era algo assustador, eles procuraram características que remetesse a cor preta em qualquer lugar, coisa/objeto, situação…etc, para criar um adjetivo pejorativo que se enquadrasse nos alvos: as pessoas negras. As brigas eram muitas, as confusões também, mas o interessante é que dificilmente minha família era chamada para conhecimento destas coisas.
Naqueles anos, minhas aulas ocorriam “normalmente” e eu fingia que estava satisfeita, pois minha avó e minha mãe faziam muitas faxinas para me manter lá. Não tinha coragem de dizer que me sentia diferente, às vezes eu me sentia um extra terrestre, meus colegas falavam de assuntos dos mais diversos e aquilo era tão fora de minha realidade, até o meu cabelo eu tinha que manter bem baixinho amarrado e se possível com os fios domados (assim recomendavam) tinha poucos colegas para conversar, não foi nada fácil concluir o ensino fundamental, eu tinha que repetir a mim mesma, (muitas vezes em silêncio engolindo o choro nos cantos, banheiros e refúgios do pátio da escola) Vá tenha coragem! enfrente! Levante a cabeça! Tua família te acha linda e inteligente! este era um mantra diário e constante, pois sabia do meu compromisso perante aos resultados que minha família aguardava pacientemente, porém com grande expectativa, e assim fui tomando consciência do que significava ser negra no Brasil.
Somos poucos, mas temos a educação de qualidade, porque não meramente técnica nem restrita a benefícios individuais. Nossa educação , nos faz responsáveis pela felicidade e progresso de nossas famílias e da comunidade negra . Razão porque precisamos estar atentos à ação e ao pensamento daqueles dentre nós que tem a formação de escola e também aquela que vem da história e da cultura do nosso povo afro-brasileiro, dos africanos. Juntamente com eles e com nossa comunidade , que inclui a todos, também é claro , os que têm mais educação da vida do que de escola. Tendo como suporte a nossa espiritualidade , vamos cada vez mais participar da construção da nação brasileira democrática que respeite, considere e se proponha a, naquilo que indicarmos, nossa situação histórico-cultural,social, econômica do povo negro.
(SANTOS)
Nos dois primeiros anos não pagávamos mensalidade, depois começamos a pagar um valor “simbólico”, mas este simbólico para nós era muito significativo, minha avó fazia questão de pagar.
Logo as roupas dos filhos das patroas de minha mãe já não serviram para eu usar na escola, pois a escola havia adotado o uniforme, os livros eram caros e nem todos os materiais não poderiam ser os reaproveitados, nesta época minha avó conseguiu mais uma casa para fazer faxinas. E comecei a fazer as unhas das vizinhas e tias, para poder contribuir com as despesas.
Com o passar dos anos, fui colocando em prática os ensinamentos apreendidos e compreendidos no nosso território sincrético. E chegando ao ensino médio, optei por fazer o Magistério, pois este curso além de iniciar logo em alguma escola era uma forma de começar a mudar posturas preconceituosas.
Digamos que vivia no senso comum sobre o que era ser negro, e a partir da minha entrada no Cecune, este que foi literalmente um divisor de águas em minha trajetória, passei a refletir com criticidade sobre o significado de minha cor de minha pessoa neste mundo, me tornar negra era para além da cor de minha pele para além dos lanhos de minha alma era sentir a fofura de meu cabelo, a força de minhas mãos grossas e perceber que dependendo da forma como uso meu corpo ele será um instrumento político de afirmação da grandeza de minha gente, ou um corpo estereotipado pelas opiniões alheias.
Conforme Ana Lúcia Valente, “ser negro no Brasil hoje significa esclarecer os outros negros e seus descendentes do papel fundamental que têm a desempenhar para mudar a situação racial aqui.”
O Cecune é uma Ong, entidade negra de Porto Alegre que há 25 anos desenvolve projetos nas áreas de cultura, educação e comunicação..
Participei do Universidade Livre, curso de capacitação em nível de extensão universitária intitulado “ Cidadania e reconstrução da identidade étnica – Egbé Omó”, promovido pelo Cecune e apoiado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Neste curso constantemente fazia a releitura de mim mesma, ouvi e dialoguei com pessoas como a professora Gevanilda Gomes dos Santos; o cineasta Jefferson Rodrigues de Rezende conhecido como Jefferson De; o poeta Luis Silva, o Cuti; o inesquecível, contagiante e emocionante professor Amauri Mendes Pereira; a professora Luiza Helena de Bairros, que nos colocou a par dos números da desigualdade no Brasil; a professora Joselina da Silva, que me fez ver a contribuição da mulher negra e principalmente, em suas oficinas, me fez refletir sobre as associações negras, formada por negros que promoviam eventos. Conheci e vivenciei alguns pensamentos e abordagens de estudos antirracistas, podendo assim uni-las às minhas práticas e posicionamentos.
Como professora, passei a refletir sobre a necessidade de estar politicamente correta não só em minhas abordagens e mediações em sala de aula, mas de perceber a importância que minha fala meu corpo e meu cabelo tinham para as crianças com quem me relacionava cotidianamente, principalmente as crianças negras. Passei a deixar livres os meus crespos e a usar trança, a partir destas novas posturas oportunizei o que eu jamais havia sentido na escola, um sentimento de identificação de se ver no outro, passei a sentir que meninas negras se viam em mim, e mesmo eu também podia me ver nelas e sentir a nossa negritude ser preservada.
Embora tudo isto não tenha sido fácil, tive a possibilidade de crescer, amadurecer e viver sem deixar afro-brasileira e me transformar em preta, fui me enegrecendo cada vez mais. Esta práxis contribuiu para minha redenção enquanto negra, foi o convívio com uma diversidade de pessoas tão importantes que ressignificavam minha existência que possibilitou a minha a nossa redenção.
Referências
SANTOS, Irene (org.). Negro em Preto e Banco: História fotográfica da População Negra de Porto Alegre. Porto alegre : Secretaria Municipal de Cultura, 2005.
VALENTE, Ana Lúcia E.F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna 1987
FERREIRA, Antônio Mario. Na própria pele: os negros no Rio Grande do sul . Porto Alegre: CORAG- Secretaria de Estado da Cultura, 2000.
FREIRE, Paulo . Pedagogia da autonomia: Saberes Necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.