Imagens que esbarrei pela internet e que me causaram um desconforto curioso me fizeram assistir Get Out. Assisti com meu irmão. Ele pesquisou sobre o filme no google e ficou intrigado com a tag: “então vamos assistir ao terror racial?”. O que seria terror racial? Eu já imaginava que o filme traria algum recorte racial pelo simples fato dos protagonistas serem um casal interracial. A minha dúvida é como isso seria explorado num filme classificado como de terror. Fui assistir assim, sem saber nada sobre o diretor, crítica, recepção.
O filme narra a ida do casal para o interior, para que ele conheça a família da moça. Ela está bem disposta a fazer o namorado acreditar que vai ser legal porque os pais dela não são racistas. Mas é só o cara botar os pés no lugar que percebe que vai ser tenso sim. A atmosfera de suspense se desenrola nesse ambiente de conflito entre o cara que só está lá de boa e as pessoas brancas se esforçando demais em fazer parecer que está tudo bem, apesar dele ser negro. O inovador aqui é que o diretor resolveu colocar em questão esses desconfortos envolvendo estereótipos numa atmosfera de terror. E o responsável pelo roteiro e direção é negro. E isso é importante.
Estereótipos são um material muito utilizado em qualquer gênero. Na comédia, a série premiada Black-ish é um exemplo. Os episódios se constroem reforçando estereótipos. Comecei a assistir e parei no episódio da primeira temporada em que o casal decide que o homem vai fazer as tarefas da casa por um tempo para “ajudar” a esposa. No fim do episódio eles decidem voltar ao normal porque a mulher sempre faz as tarefas domésticas melhor que o homem, além dela se sentir entediada por não ter mais o que fazer. ? . Detalhe: os dois trabalham fora, eles têm 4 filhos: dois adolescentes e duas crianças gêmeas, ela é médica! Pelo que li e ouvi de outras pessoas que assistiram, a série insiste mesmo nessa direção, além de soar muito como comédia pra branco ver, pois quase todas as piadas surgem em momentos em que o protagonista questiona o que é negro o suficiente ou não.
Essa comparação, para além de disputar subjetividades, me trouxe duas questões. A primeira é sobre como a escolha pelo modo como as questões vão ser tratadas é fundamental. São muito comuns narrativas em que até existem personagens negros, mas o foco é sempre no olhar branco que salva tudo no final, ou filmes em que há protagonistas negros, mas o recorte é sempre escravidão, açoite, estupro, sofrimento. No terror há lista enorme e bizarra de filmes em que o coadjuvante negro é sempre um dos primeiros personagens do filme a morrer. A consequência óbvia disso é que essas representações acabam sendo um desserviço. Não estou negando a importância de filmes que tratem da escravidão, do racismo institucionalizado; discussões que comovem as mesmas pessoas que no dia a dia são cegas para o fato de que o racismo continua institucionalizado. O problema é insistir nesse olhar quando se pode falar de diversos lugares.
Chimamanda Ngozi Adichie, escritora feminista nigeriana, em uma fala super poderosa e fundamental na plataforma TED, fala sobre o perigo da história única. A partir do lugar de contadora e leitora de histórias, ela nos mostra como a história única é perigosa, porque limita nossa percepção do mundo e de nós mesmos. Mas é justo a partir do momento que começamos a questionar essas histórias únicas que podemos renascer, porque em muitas narrativas apenas não existimos. Trazendo essa questão pra esse texto, não é difícil reconhecer que as representações de pessoas negras, quando existem, ainda precisam melhorar muito. Somente questionando e disputando narrativas podemos nos afirmar como pessoas múltiplas, e incentivar a reflexão para que nos reconheçam como.
A segunda questão é que o protagonismo é importante e fundamental. Jordan Peele é um comediante negro que estreou na direção com Get Out no desafio de transformar o desconforto de um jovem negro que vai conhecer a família da namorada branca em um filme de terror. E mostrou que é possível. Criticando estereótipos, algumas vezes no tom de comédia desconcertante, mas possibilitando também a reflexão. O filme aborda essas situações que pessoas negras acabam vivendo quase que diariamente pela perspectiva do homem negro. Por isso a importância do protagonismo. Na interpretação, no roteiro e na direção. Se uma narrativa pretende abordar temas de um grupo específico, penso que o mínimo é que existam pessoas que vivem de fato a realidade retratada, envolvidas. O que não significa que apenas isso vai ser garantia de uma narrativa sem problemas. O criador de Black-ish é negro. O que vai definir isso é a escolha de quem faz. O que ela acha de fato importante comunicar e destacar.
É bem interessante como o diretor trabalha essa questão dos perigos que envolvem os estereótipos, o desconforto, o medo, em nuances, até que o protagonista entenda o que realmente está acontecendo e comece de fato o terror e as cenas de ação. Tem uma cena, bem no final do filme, que ilustra de forma bem enfática essa questão da “escolha” que eu estou querendo chamar a atenção nesse texto. É o momento em que a polícia chega. Ele poderia escolher não abordar o perigo que é ser negro numa sociedade racista, em que a cor da pele na maioria das vezes chega primeiro e decide o final. Isso está acontecendo na vida real. Com finais trágicos em sua maioria. Agora. Homens e mulheres estão morrendo pela cor de sua pele. Essa cena pra mim foi o ápice do terror porque me fez pensar nisso.
Get Out estreia no Brasil esse mês (maio) e pode ser mais uma forma de mostrar que é possível misturar gêneros, falar de questões importantes, e ser responsável. Mostrar enfim que uma coisa não precisa anular a outra. Li alguns textos que classificavam o filme como politicamente incorreto. Se tratando de reforçar estereótipos de pessoas negras, fazem isso o tempo todo. O politicamente incorreto é desprezível, e ainda impera no entretenimento esse humor irresponsável e medíocre. Penso então que a classificação de politicamente incorreto é errônea. Porque o filme é bem eficaz em sua crítica aos estereótipos de forma crua e direta. E os momentos de humor só reforçam as críticas; só os cegos vão conseguir achar graça sem questionar.
Em um episódio da série Dear white people, a personagem Joelle sugere para Reggie que às vezes ser despreocupado e negro é um ato de revolução. Esse mesmo personagem sente na pele como esse “às vezes” está sempre ameaçado se você for um homem negro. Num momento que deveria ser de descontração e é interrompido por uma briga causada por um amigo branco incapaz de reconhecer seus privilégios e aceitar de Reggie que ele está sendo racista, a polícia é chamada para “resolver” as coisas e ele se vê com uma arma apontada para si por questionar o policial que pede apenas para ele o documento de identificação.
Neste 5º episódio, dirigido por Barry Jeakins, vemos mais uma vez que ainda é difícil para o homem negro ser despreocupado, porque há situações em que a cor da pele chega primeiro e decide quem esse homem deve ser, ou se ele deve continuar vivo. Portanto, afirmar nossa humanidade e multiplicidade é na maior parte do tempo uma tarefa diária. Como a arte é uma ferramenta importantíssima para a reflexão e também para a cura, é fundamental disputar narrativas e compartilhar o que as pessoas negras estão produzindo.
Lembrando o desconforto do meu irmão com a tag terror racial, concluí que conviver com o racismo, o genocídio, o apagamento de possibilidades e vivências, é a nossa definição diária de terror. Get Out deve chocar bastante por isso. Porque desloca. Coloca questões raciais em um lugar não comum. Nessa realidade em que a comoção e a revolta são sempre tão seletivas, e a discussão racial ainda caminha com dificuldade, arrastada pelo pensamento preguiçoso e sintomático de que as pessoas negras veem racismo em tudo, estar em contato com a reflexão produzida por pessoas negras é um fôlego.
Referência:
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt
Imagem de destaque – Betty Gabriel em Get out.