Salvador, 15 de setembro de 2017
Nos cafundós de São Paulo, em Capela do Alto, num sítio que abriga a família tradicional brasileira, estiveram 280 mulheres negras. Há pelo menos 130 anos poderíamos estar escravizadas nessas terras, mas no início de setembro de 2017, 280 mulheres negras estiveram todas vivas, discutindo suas autonomias no II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas (ENNJF). Interagindo entre regiões e escutando as mais velhas, pensamos no futuro d@s noss@s. 280 mulheres negras, jovens, feministas e mulheristas, majoritariamente lésbicas e bissexuais, sem medo de existir.
Viemos de todos os cantos, becos e vielas carregando encantos e sonhos que hão de ressoar daqui a cem anos, em noss@s bisnet@s. Atravessadas por identidades que não podemos nos dissociar, discutimos sobre as estruturas que nos fazem sentir renegadas. Debatemos sobre o genocídio que nos assola, por sermos negras, por sermos mulheres, por sermos jovens. Todos temas muito caros a nós, culpas que levam o corpo de nossos entes, machucam nossas almas e nos privam de afeto.
O encontro, desde sua abertura com Sueli Carneiro (SP), Jurema Werneck (RJ) e Valdecir Nascimento (BA), ao lado de Ayana Odara (MG), Ana Paula Rosário (BA) e Lorena Araújo (PA), foi também uma experiência de treinar os olhares para nós mesmas, admitir que há ainda muito para aprender. Em apenas uma aula de dança com Flávia Souza (RJ), por exemplo, descobrimos que o balançar dos nossos corpos, principalmente dos quadris, evocam saberes ancestrais e pedem para que saibamos sentir as energias que nos envolvem. Com Neusa das Dores (RJ), ao lado de Fernanda Gomes (SP), conhecemos a história na luta pelos direitos das mulheres lésbicas e bissexuais no Brasil, mas também vimos a mais velha se colocar como ouvinte para aprender com as mais novas, no debate sobre gordofobia, facilitado por Milena Christine Freitas (BA). Eloá Rodrigues (RJ) nos fez o favor de questionarmos os limites da nossa luta, ecoando a voz das (poucas) mulheres trans presentes e, sobretudo, das ausentes.
Resumindo, em meio aos embates se confirmou a pluralidade das mulheres negras e a necessidade de oferecermos muito mais amor do que indiferença à irmã ao lado. Procurando nos amar, amamos umas às outras e dessa forma poderemos enxergar e escrever nossa história por um lugar libertário. Não percamos o foco, enlouquecendo com as falsas metas. Afeto! Mina, vamos marchando juntas!
Mas então, o que querem as jovens negras?
Uma educação que conte nossa história para além da escravidão, do sofrimento e da amargura. Um sistema de saúde que não tente nos controlar, mas nos ajude a estar bem, em nossas sexualidades e afetividades. Uma política de segurança pública que não elimine os nossos, ao lado e no oposto do Estado. Uma comunicação que bem nos represente, o ano inteiro, não somente em julho e novembro. Um Estado laico em que nossas religiosidades não sejam massacradas. Um país onde nossos direitos não sejam ignorados, na cidade ou no campo, dentro ou fora da academia. Enfim, uma sociedade onde caibamos em toda nossa complexidade.
Como as mais velhas disseram: não se luta sozinha. Das marcas que os passos da Marcha das Mulheres Negras em 2015 já deixaram, percebi no II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas a força que temos individualmente, mas que em conjunto nos transformamos em inquebrantáveis. Hoje retrocessos ameaçam nossas vidas. Ainda que racistas, sexistas e lesbitransfóbic@s coloquem a cara no sol, vivenciamos um momento chave na disputa por narrativas. A história, que nunca anda para trás, somente avançará com nosso caminhar.
É fundamental reconhecer a potência da construção coletiva. Foi ela quem viabilizou o encontro, quer tenha sido pelas organizações que acreditaram no evento – como a Rede de Mulheres Negras Afro Latinas, o Odara: Instituto da Mulher Negra, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA Brasil) e o próprio Blogueiras Negras – quer tenha sido pelas mulheres que se viraram de todos recônditos do país em direção a São Paulo.
Não estamos só! Somos o resultado das batalhas de noss@s ancestrais. Temos a obrigação de ecoar a história das Terezas, Dandaras e Zeferinas, alicerces de resistência. Se por séculos culpabilizam nossos corpos da violência que sofremos, o ENNJF foi o momento em que molhamos aquela terra interiorana com nosso choro, perfumamos o ar com nosso amor e recarregamos nossas energias para seguir em frente.
Nós jovens negras lutamos hoje pela história de noss@s antepassad@s, pelo amor interno e autocuidado, pelo futuro da nação. Queremos, podemos e vamos viver plenamente. O fim de semana no sítio foi uma pequena amostra do que é expressar nossos corpos por inteiro e em coletivo. 280 mulheres negras vivas! Somos poucas para as mais de 50 milhões no Brasil, mas estamos prontas para aliar forças, amores e inteligências, desatando os nós de qualquer amarra que nos impeça bem viver.
Jovens negras? Presentes ontem, hoje e sempre!
Imagem – Fran Silva