No dia em que se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, a Rede Ciberativistas Negras, núcleo Rio Grande do Sul, se propõe a somar às muitas manifestações das mulheres negras a partir de suas próprias narrativas e trajetórias. Queremos falar sobre as vidas e desafios das mulheres negras que vivem ou viveram em solo gaúcho, dos desafios que envolvem ser um corpo negro feminino em um estado que é culturalmente constituído por narrativas eurocêntricas e brancas. Um lugar que mobiliza seus símbolos no sentido de invisibilizar a negritude e suas contribuições. Daqui, do gélido Rio Grande do Sul, mobilizamos nossos esforços para sermos livres.
São muitas as mulheres negras que desafiaram as lógicas racistas e sexistas desse território, muitas que nos inspiram e que compartilham conosco frentes de lutas. Aprendemos cotidianamente com essas mulheres , a partir da escuta e também das trocas. Nos inspiramos naquelas que vivem nos nossos corações e memórias e queremos contribuir com o rompimento da invisibilidade dessas mulheres.Luiza Bairros talvez seja a mulher negra gaúcha mais conhecida nacionalmente. Para além de sua trajetória enquanto ministra e dos cargos que ocupou nos governos e nos organismos internacionais, Luiza é (e não foi, porque continua sendo entre nós) uma referência central aos movimentos de mulheres negras. Suas contribuições tanto ao feminismo negro quanto ao movimento negro são fonte de debates, articulações, formações políticas. Luiza, que revisitou os feminismos para alertar sobre suas ausências a partir de uma perspectiva que situa os principais conceitos e explica porque estes não dão conta das subjetividades das mulheres negras, experienciou no Rio Grande do Sul o início de sua trajetória ativista e intelectual. Infelizmente, as nefastas consequências do racismo nesse estado, que não é nada sutil e nem um pouco cordial, não permitiram que Luiza tivesse o merecido reconhecimento em sua terra natal. Desde sua trajetória acadêmica, Luiza era lida de maneira subestimada, ainda assim não foi possível eclipsar sua potência, a qual floresceu ao calor de Salvador e possibilitou que tantas outras trajetórias germinassem país afora.A professora pelotense Maria Helena Vargas (1940-2009) é outra mulher negra gaúcha que nos inspira e que tão poucas vezes é mencionada nos escritos a respeito de personalidades negras mulheres. A Helena do Sul, como era conhecida, foi uma mulher pelotense cujo o avô foi contribuidor de um dos mais longevos jornais da imprensa negra, o “Alvorada”. Maria Helena Vargas representa uma trajetória que é compartilhada por muitas de nós que temos a família como centro de nossas conquistas. A professora, escritora, ativista, tinha orgulho do seu lugar, da sua cidade, do território onde seus familiares estruturaram suas vidas. Maria Helena Vargas era uma mulher do avesso, que conforme seus próprios escritos “desprezava os olhares de desaprovação das senhoras direitinha, sem avesso por fora… Recebia, na frente da cara os insultos de gente ordinária, que pensa que vale mais que os outros, só porque os outros não deixam seus avessos expostos. Mas a mulher não ligava para os alheios e seguia”.
Assim como Maria Helena Vargas, que dedicou sua trajetória a fomentar projetos de educação anti-racistas, Maria Conceição Lopes Fontoura, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez da educação parte central de seu ativismo. As produções acadêmicas de Maria Conceição centram-se no tema da educação demonstrando como o racismo institucional estrutura a exclusão das temáticas afro-brasileiras em seus currículos. Além disso, sua atuação na ONG Maria Mulher é um marco referencial para o feminismo negro. A organização, fundada em 1987, tem por missão a defesa dos direitos humanos das populações marginalizadas e excluídas, principalmente, de afrodescendentes. O objetivo da organização é combater as discriminações sexista, étnico-racial e sociais. Conceição, como frequentemente é chamada no meio dos movimentos negros e feministas do Rio Grande do Sul, é educadora, servidora pública, mãe, companheira, amiga. Temos a honra de muitas vezes poder ouvi-la, estar em sua presença e absorver tantos conhecimentos que ela tem para compartilhar de forma tão generosa.
Embora o trabalho doméstico seja uma pauta frequente na agenda feminista negra, poucas vezes mencionamos a importância das trabalhadoras domésticas para o feminismo negro. Muitas de nós somos frutos do trabalho doméstico, através de nossas avós, mães e tias. As empregadas domésticas estão articuladas e pautando direitos para mulheres, sobretudo para mulheres negras, desde muito antes da institucionalização do movimento feminista negro. Entre essas mulheres está a pelotense Ernestina Pereira. A trajetória de luta e resistência de Ernestina se confunde com a própria existência do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Pelotas e da Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas. Nascida no Quilombo do Algodão, Ernestina começou a trabalhar como doméstica aos treze anos. Desde 1987 atua de forma orgânica em entidades que buscam a dignidade e direitos para as trabalhadoras domésticas, atualmente é presidente do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas. Para a Ernestina a organização de mulheres negras é central uma vez que assim é possível conscientizar as pessoas que elas possuem direitos. Ernestina é uma mulher cuja trajetória política é vocalizada a partir da consciência de classe e raça. Ao descrever o trabalho doméstico, essa grande ativista expõe um sem fim de possibilidades para refletir sobre os feminismos: “Um aspecto triste do trabalho doméstico é que na maioria das vezes é uma exploração de mulher para mulher. Uma mulher sobrecarregada de trabalho que não tem tempo para as tarefas domésticas e explora outra mulher, sem dar os devidos direitos”Viver na Colônia Africana é hoje um movimento de resistência. E é assim que Maria Noelci Teixeira Homero permanece mantendo a história de sua família em um bairro que hoje poucas pessoas negras conseguem morar devido a especulação imobiliária. A No, como é carinhosamente chamada, é uma referência central para o movimento de mulheres negras no Rio Grande do Sul. Sua trajetória enquanto ativista do feminismo negro se dá a partir do centenário da “pseudo abolição da escravatura”, foi nesse momento que o feminismo negro passou a fazer parte das pautas e da militância de No. Essa jornada compartilhada com muitas gerações de mulheres negras tem seu ponto de partida a partir das atividades realizadas pelo Maria Mulher Grupo de Mulheres Negras. No tem uma atuação destacada na pauta de segurança alimentar. Para ela,pensar na mulher negra é também pensar sua relação com a alimentação, questão atravessada pela ancestralidade. Ela afirma que a “soberania e Segurança Alimentar e Nutricional é importante para nós Mulheres Negras, porque nos remete diretamente aos nossos saberes, fazeres e dizeres Ancestrais e nossa trajetória antes e depois da travessia forçada. E, também está ligada a uma parte significativa de nosso bem viver”. Fazendo um liame com o que vimos fazendo enquanto mulheres que se situam como ciberativistas, de modo a pensar no resgate entre as gerações de mulheres negras, ela é muito precisa ao dizer que “os Diálogos Intergeracionais entre mulheres negras são imprescindíveis para o embasamento de nossas lutas pela autonomia, reconhecimento e visibilidade. É possibilitar a continuidade.”
Essas mulheres, assim como tantas outras, fazem parte da construção coletiva e partilhada do feminismo negro brasileiro. Feminismo que se origina da ação política das nossas ancestrais, que lutaram pelo direito ao próprio corpo, a manutenção de suas famílias, pela sobrevivência de suas irmãs. Um movimento protagonizado por mulheres que tem na sua narrativa e trajetória a reflexão para a construção de sociedade equanime e pluaral, onde sejam respeitadas as subjetividades de cada mulher negra e suas potências.
Nós aqui no Sul também temos uma história referenciada no ativismo e na resistência dessas mulheres. Elas nos inspiram e com elas temos a honra de caminhar.
Referências
PINTO, Ana Flávia Magalhães; DA SILVA FREITAS, Felipe. LUIZA BAIRROS–UMA “BEM LEMBRADA” ENTRE NÓS 1953-2016. Afro-Ásia, n. 55, 2017.
http://revistadonna.clicrbs.com.br/gente/conheca-as-10-indicadas-ao-3-premio-donna-mulheres-que-inspiram/