As comunidades e favelas do Rio de Janeiro têm enfrentado a ausência do poder público em diversas áreas desde suas fundações, inclusive em questões que são direitos garantidos constitucionalmente. Infelizmente, o Morro do Borel não é exceção. Localizada na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e cercada pela Floresta da Tijuca, a comunidade ocupa uma área de 345.880 m² e convive há décadas com a falta de saneamento e de acesso à água potável. Uma situação que tem sido denunciada pelos moradores e pelos veículos de comunicação, como o canal Voz das Comunidades, cotidianamente.
Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apenas 10% da população do Borel tem acesso à rede de esgoto, enquanto o restante utiliza fossas ou lança dejetos diretamente nos rios e córregos da região. E a conta é simples, sem saneamento, sem água potável. Mesmo sendo atravessada pelo Rio Maracanã, manancial poluído pelo despejo de esgoto irregular, os moradores da comunidade precisam comprar água em caminhões-pipa ou pegá-la em fontes não confiáveis para poder sobreviver e dar conta de suas tarefas mais básicas.
Pessoas negras, principalmente mulheres negras, são as mais afetadas por esse problema. São elas que estão na linha de frente do cuidado dos lares e são as que mais precisam de suporte quando o assunto é a falta de água. Essas mulheres muitas vezes precisam andar, subir e descer quilômetros para realizar tarefas domésticas, como lavar roupa – umas das atividades domesticas mais intensas.
Foi olhando para essas dificuldades que, durante a pandemia, a moradora Ana Márcia, ao observar mulheres utilizando água irregular para realizar seus afazeres, disponibilizou uma máquina de lavar e uma torneira na parte externa de sua casa para que as pessoas da comunidade pudessem ter acesso a água potável. A partir daí nasceu o projeto “Lavanderia Comunitária do Borel”, uma iniciativa de tecnologia social de acesso à água que atualmente atende dezenas de mulheres na comunidade do Borel. Nossa coordenadora de comunicação, Viviane Gomes, conversou com a socióloga, especialista em relações étnico-raciais e uma das voluntárias do projeto, Esther Oliveira, sobre a iniciativa. Confira a entrevista!
BN: Ficamos impressionadas com o projeto “Lavanderia Comunitária do Borel”, uma iniciativa de tecnologia social de acesso à água que atende muitas mulheres, principalmente negras. Conta um pouco sobre a iniciativa!
Esther Oliveira: Eu sou voluntária no projeto lavanderia social que fica no Borel. Essa iniciativa foi criado pela Ana Márcia, que é uma moradora do Borel. Ela já mora há muitos anos na comunidade. Esse projeto acontece na Comunidade Indiana, que é uma sub-comunidade do Complexo do Borel. Dentro da comunidade do Borel nasce o Rio Maracanã, ali na Tijuca. Quando eu cheguei lá, eu fiquei muito espantada, né? Impactada de saber que o Rio Maracanã nascia tão pertinho da comunidade. E aí eu fui conhecer a história dos moradores com o rio e descobri que as pessoas pescavam e usavam ali, mas que hoje é um rio poluído, principalmente pelo despejo de esgoto, tanto da comunidade quanto dos condomínios ali da Tijuca. Mesmo assim, as pessoas continuaram usando o Rio por causa da falta de água. Foi a partir disso que a Ana Márcia, moradora da comunidade, montou na frente da casa dela uma lavanderia, com uma máquina de lavar e uma pia, para que outras pessoas pudessem lavar suas roupas e suas louças. O projeto já tem quatro anos e hoje já são duas pias e cinco máquinas de lavar. Ela [Ana Márcia] organiza o horário das pessoas, quanto tempo cada pessoa pode usar a pia ou a máquina e assim ela faz uma escala e as pessoas vão utilizando.
BN: É interessante, e ao mesmo tempo triste, como a ausência completa do poder público acaba sendo contornada pela sabedoria popular do território. Não totalmente, mas de forma emergencial. Para além da água, que é essencial, qual é a importância da utilização da máquina de lavar para essas mulheres do Borel?
Esther Oliveira: Com certeza, exatamente. A água encanada é um direto fundamental. Estamos falando de pessoas que moram numa região que é considerada “nobre”, ao lado da Tijuca. Mas os moradores do Borel não têm esse acesso à água encanada. Pesquisando sobre a máquina de lavar, curiosamente descobri que ela é considerada um equipamento que traz autonomia e economia de tempo para as mulheres. Então ela foi, durante muito tempo, tratada como o símbolo do próprio feminismo, porque retirou da mulher aquela necessidade do uso do trabalho braçal e diminuiu seu tempo na atividade. Você deixa a roupa lavando na máquina de lavar, depois você tira e estende. Isso era uma coisa que antes você tinha que ficar ali o tempo todo esfregando, lavando. Então isso realmente trazia um gasto de tempo muito grande para as mulheres. Então a Márcia, com o conhecimento que ela tinha, descobriu uma forma de ajudar não só nesse suporte e na questão da sustentabilidade, mas também na saúde e na autonomia dessas mulheres. Ela tem um discurso muito interessante sobre a questão da sustentabilidade e da limpeza do Rio Maracanã, propondo um trabalho de ativismo dentro desse espaço.
BN: Uma análise muito importante, Esther. É interessante ressaltar que esse projeto também é uma iniciativa de tecnologia e inovação, por mais que não pareça. Durante anos, e até hoje, o lugar de produtoras e usuárias de tecnologia foi/é negado para as mulheres negras. O que você observa sobre isso, trazendo o projeto pra essa análise?
Esther Oliveira: Pois é. Eu pesquiso sobre essa relação entre a máquina de lavar e a lavadeira também. A gente não tem a dimensão de quantas questões sociais você tem a partir dessa questão da máquina de lavar. Primeiro ponto é o fato da máquina de lavar ser um item essencial e individual nas residências, né? Na pesquisa do IBGE vem lá a pergunta se a pessoa tem uma máquina de lavar dentro de casa. Mas de que casas e locais estamos falando? Lá fora, em outros países, existem as lavanderias coletivas nos prédios. Eu mesma estive na Espanha, num condomínio, e era uma máquina de lavar para um bloco de apartamentos onde eu fiquei hospedada para fazer um curso. A gente no Brasil individualiza o acesso a esse recurso, quando poderia ser compartilhado. Algo feito nesse projeto do Borel, onde a máquina de lavar é usada como uma ferramenta coletiva, a partir de um olhar coletivo para o acesso à um direito que aqui é considerado essencial para cada indivíduo. Imagina como seria sustentável se a gente tivesse uma lavanderia coletiva nas comunidades?
BN: E isso tudo é tecnologia e inovação. Ampliar as dimensões sobre o que é tecnológico é algo que precisa ser feito todos os dias, pra gente não achar que tudo é só internet, código de linguagem ou ferramentas digitais. É preciso que mais projetos como esse, que olhem para as necessidades coletivas nos territórios, possam existir. Né, Esther?
Esther Oliveira: Exatamente. Isso pode ser uma política pública. A gente pode ter esse projeto em outras favelas, disponibilizando para outras pessoas uma lavanderia coletiva. Talvez a Ana Márcia não entenda a real dimensão do que ela tá fazendo, mas ela sabe da necessidade. Tanto que ela botou a máquina dela para fora e abriu para as pessoas usarem. Um sentido de coletivo muito forte. A gente também tem uma questão que é o seguinte: qual é a quantidade de mulheres, quando a gente pensa nessa questão da cor? Quem são essas mulheres que moram na favela? A maioria são mulheres negras. Essas mulheres foram as mais prejudicadas por exemplo durante a pandemia. No feminismo negro e no mulherismo africano você não olha só para o acesso de uma mulher, você olha para o acesso de um coletivo e do quanto elas podem se ajudar, cooperar e crescer juntas. Pensando nesse conceito, a gente tem essa lavanderia que potencializa o acesso das mulheres negras a máquina de lavar e a água potável.
BN:O tempo que essas mulheres economizam é algo importantíssimo, pois existem outras coisas intercaladas a esse benefício. O trabalho doméstico acaba sendo mais uma das jornadas de trabalho das mulheres negras, algo que com o tempo nos adoece e nos enfraquece. Também podemos falar sobre o custo de uma máquina de lavar e o custo de manutenção dela. São muitas dimensões, você concorda?
Esther Oliveira: Exatamente. Porque são mulheres que já gastam o seu tempo muitas vezes trabalhando em outros lugares, e aí tem essa questão da máquina de lavar ser um equipamento que encurta o seu tempo de trabalho. Eu lembro da minha mãe fazendo isso, ela trabalhava num hospital a noite, chegava de dia em casa e ia lavar roupa no tanque porque não tinha acesso a uma máquina de lavar, um esforço físico que a longo prazo gera Bico de papagaio, bursite, dor do ombro, e outras doenças relacionadas. E não é só sobre a maquina de lavar, você precisa ter estrutura e acesso à água. Algo que no Borel quase ninguém tem. Além disso, a máquina de lavar custa quase 2 mil reais e muitas dessas mulheres ganham apenas um salário mínimo, ou menos, e dificilmente vão poder comprar um equipamento pra uso exclusivo. Na lavanderia social a gente contorna esses desafios, fazendo com que essas mulheres se conheçam, colaborem e criem redes para encontrar novas soluções.
BN: Esther, muito obrigado pela entrevista. Adoramos conhecer este projeto e ouvir você. Sem dúvida, essa iniciativa também resgata práticas de coletividade que nós, mulheres negras, estamos desenvolvendo há séculos.
Esther Oliveira: Sim! Como eu falei, muda a dinâmica do território e apresenta uma noção mais coletiva sobre a utilização dos recursos. Os próprios moradores do Borel começaram a questionar por que o esgoto é lançado num Rio. Por que que não existe uma política de tratamento desse esgoto e de captação desse esgoto na comunidade? O projeto vai além da máquina de lavar. Obrigada, gente!
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O projeto “Lavanderia Comunitária do Borel” pretende expandir o seu funcionamento em 2023 e atender mais moradores da comunidade do Borel, por isso, a iniciativa esta com uma vaquinha aberta no site Benfeitoria.com. As doações podem ser feitas até o dia 25 de Abril e irão custear a reforma da lavanderia, a compra de novas máquinas de lavar e a criação de um ambiente para as mulheres da comunidade aprenderem a produzir produtos de limpeza e realizar ações que possam ajudar a custear o projeto. Clique aqui e faça a sua doação!
Reportagem: Viviane Gomes e Wellington Silva
Edição: Viviane Gomes e Wellington Silva
Ilustração: Renaya Dorea