texto originalmente publicado em População Negra e Saúde
O aborto inseguro é uma realidade que persegue o cotidiano das mulheres em suas trajetórias reprodutivas, cerca de 22 milhões de abortos inseguros ocorrem todo ano no mundo, e estima-se que 47 mil mulheres morram anualmente de complicações decorrentes do recurso a práticas inseguras para a interrupção da gravidez, é o que informa a Organização Mundial de Saúde. Só para recordar, aborto inseguro é definido como um procedimento para interromper a gravidez não planejada/pretendida realizada por pessoas sem as habilidades necessárias, em um ambiente que não esteja em conformidade com mínimos padrões médicos, ou ambos, sendo ainda é uma das principais causas de morte materna.
Apesar do aborto clandestino ser um evento que atinge todas as mulheres independente da classe, raça/cor, idade, região e religião quando inseguro (com complicações como infecções e hemorragias graves) se apresenta de forma mais cruel para as mulheres negras e de periferia, pois o risco de morte materna por aborto no Brasil é quase três vezes maior para as mulheres negras que para as mulheres brancas.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saude/IBGE (2013) são as mulheres negras que mais declaram os abortos tanto espontâneo (17,9% negras; 12,3% brancas) quanto provocado (2,4% negras; 1,7% brancas), e quando interseccionam com região e nível de instrução observa-se um aumento para 4,5% para as negras com nível fundamental completo e médio incompleto do nordeste. No entanto, por ser criminalizado a informação sobre aborto provocado é subestimado, ou as mulheres negam ou dizem que foi espontâneo.
A tese Racismo e Aborto (GOES, 2018) revela que as mulheres pretas são as que mais declaram aborto provocado (31,1%), seguida das pardas (24,2%) e das brancas (21%), o inquérito entrevistou mulheres em situação de abortamento em três capitais do Nordeste. No estudo também identifica que são as mulheres pretas foram as que mais informaram a gravidez como não pretendida: mais assumiram que não queriam engravidar, estavam em uso de contraceptivos, mais pensaram em fazer um aborto e o declararam como provocado na gravidez atual e em anteriores.
O contexto de desigualdades estruturado pelo racismo colocam as mulheres negras em maior situação de vulnerabilidade, ao mesmo tempo, impede a autonomia e tomada de decisão no exercício reprodutivo. No documento preparatório para a Conferência Mundial de População e Desenvolvimento de Cairo/94, a “Declaração de Itapecerica da Serra” o movimento de mulheres negras declarara que a liberdade reprodutiva era essencial para as etnias discriminadas e reivindicou do Estado brasileiro a garantia dos direitos reprodutivos, assegurando condições para a manutenção da vida com condições necessárias para que as mulheres negras pudessem exercer a sua sexualidade e seus direitos reprodutivos controlando a sua própria fecundidade, decidindo se querem ou não ter filhos¹.
Com isso, torna-se necessário considerar a dimensão da justiça reprodutiva como uma perspectiva mais ampla com o entendimento de que as mulheres negras experimentam e vivenciam um conjunto complexo de opressões e hierarquias reprodutivas. Segundo Loreta Ross (2006) a justiça reprodutiva baseia-se na compreensão de que os impactos das opressões de raça, classe e de gênero não são aditivos, mas integrativos e seus entrelaçamentos produz o paradigma da interseccionalidade, gerando a discriminação interseccional.
Por exemplo, as mulheres em situação de abortamento inseguro, geralmente, precisam de internação hospitalar para finalizar o aborto, e neste processo que as mulheres sofrem violências institucionais por conta do estigma do aborto, as mulheres negras experimentam situações distintas. São as que mais relatam medo de ser maltradas na busca por cuidados, fator este que retarda a procura pelo serviço, levando a uma situação limite quando se leva em consideração os riscos de um aborto inseguro. São as negras também, sobretudo as de pele mais escura, que apresentam mais dificuldades institucionais (“esperar muito para ser atendida”, “aguardar vaga/leito”, “parturientes eram atendidas primeiro”). Neste sentido, o racismo institucional com estigma do aborto redobram o risco das mulheres negras de sofrerem violência obstétrica, podendo levar a uma morbimortalidade materna (Goes, 2018).
Os dados do Sistema de Morbidade Hospitalar do Ministério da Saúde revela que no ano de 2016 houveram 195.860 internações por consequências do aborto e 62,4% das mulheres eram negras. A Figura 1 demonstra também a intersecção com a idade, o percentual entre as mais jovens se apresenta maior para as negras e depois inverte sendo as brancas mais velhas, em relação a idade, os grupos etários mais jovens são mais vulneráveis as complicações do aborto inseguro.
O racismo afeta a forma como as mulheres negras vivenciam os seus eventos reprodutivos, configurando cenários desfavoráveis na gravidez e, diante da sua decisão pela sua interrupção, dificultando a busca pelo cuidado, o acesso e utilização do serviço para a finalização do aborto.
Neste sentido, as reivindicações pela legalização do aborto não podem estar desassociadas do enfrentamento ao racismo que estrutura a nossa sociedade nas suas diversas formas, e que impede que as mulheres negras exerçam de direitos reprodutivos com justiça social, quer na escolha de ter filhos e vê-los crescer de forma segura, quer para realizar aborto sem riscos.
A luta pela legalização do aborto é pela vida das mulheres negras e pelo direito de existir na plenitude, porque nossas vidas importam.
REFERENCIAS:
Goes, Emanuelle Freitas. Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional. 105f. Tese (Doutorado Saúde Pública) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
Ross, L. 2006. “Understanding Reproductive Justice.” Atlanta, Georgia: SisterSong. http://www.trustblackwomen.org/our-work/what-is-reproductive-justice/9-what-is-reproductive-justice
¹Documento preparatório para a Conferência Mundial de População e Desenvolvimento de Cairo/94, a “Declaração de Itapecerica da Serra”. https://www.geledes.org.br/programa-de-saude-memoria-institucional-de-geledes/