Por Carla Ferreira para as Blogueiras Negras
Praticamente todos os anos, para ser precisa no mês de agosto, me vem a seguinte lembrança: eu, com seis anos de idade, sentada na varanda de casa, com a minha mãe (que é a minha avó materna) antes das seis da tarde esperando para fazer a reza de Omolú.
A fé pelos orixás, bem como a religião de matriz africana se fez presente na minha vida desde cedo. Bisneta de africano e índia, o candomblé entrou na família segundo a história oral da minha mãe pelo meu tataravô, que nasceu na África e aqui no Brasil veio a ser capitão do mato.
Diz minha mãe que ele era feiticeiro, dos bons, de nação Angola. Foi repassando para os filhos como cuidar da “nossa família” (maneira de denominar o nosso candomblé até hoje, já que a família toda praticamente é iniciada na religião). Até a linhagem da minha mãe (avó) todos nasceram na Bahia e foram iniciados no candomblé da Nação Engenho Velho.
No meu caso, precisei ser iniciada na religião bem cedo, mais precisamente aos quatro meses de idade, devido a problemas que no início pensava-se que eram de saúde e que na verdade eram de herança.
Eu, por ser a primeira filha da primeira filha herdei um orixá que aos olhos de alguns é complicado além de toda mediunidade da minha mãe.
Cresci neste meio e passei a seguir um caminho que confesso que no início não entendia muito a logicidade e a complexidade da minha herança o amor e a caridade aos orixás, pois quem batesse no nosso portão necessitando de uma ajuda, uma reza não era negado.
Minha mãe (vó) nunca quis que seguíssemos a religião da família, por mais que estivéssemos dentro da coisa em si, sempre quis que fossemos a igreja católica, íamos a missa, fizemos primeira comunhão, eu fiz crisma e até fui professora de catequese, situação que teve fim assim que comecei a questionar o padre da igreja que eu frequentava. Isto somou-se à dificuldade que notava em minha mãe de prosseguir com os cuidados da nossa casa, já com o cansaço da idade (aos 6 anos de idade já trabalhava para ajudar os outros e desenvolvia sua mediunidade) e o descaso da minha família, já que só procuravam cuidar do orixá quando necessitavam de algo – e isto me causava uma certa revolta.
Observando tudo isto e um pouco confusa, resolvi abandonar de vez a igreja católica e mergulhar de cabeça na minha origem e herança. Confesso que o ingresso na graduação de história onde surgiu a oportunidade de estagiar no Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros, literalmente retirou venda dos meus olhos.
Nós, negras e negros brasileiros andamos vendados ou vendidos a uma realidade que não é nossa, é imposta. A meu ver, o conhecimento resulta na defesa, na não estagnação, no não rendimento e aceitação de qualquer coisa ou cultura que nos seja imposta.
Assim como minha mãe não queria que nós seguíssemos a religião trazida pelo meu bisavô, ou até poderíamos seguir “mas tínhamos que frequentar a igreja católica”, “tínhamos que tomar a hóstia”. Como sempre, tudo o que negro faz é errado, há de se fazer algo branco pra se “purificar”. Minha bisavó sempre olhava para mim, principalmente quando estava macerando as ervas e dizia: “primeira filha da primeira filha”.
Hoje eu entendo a responsabilidade de dar continuidade à toda a história de um povo e de uma família, ser parte da herança e o mais importante, repassar esta história com a liberdade e a consciência de estar fazendo o certo, não deixar minha cultura se esvair. O conhecimento liberta da culpa, possibilitando o real entendimento e o livramento que há tempos impuseram sobre nosso povo. Compreender todo este processo não foi fácil, estamos falando de escravidão e servidão de corpo e alma, que não vem de hoje.
Se libertar de certos preconceitos que já se tornaram conceitos na sociedade é um processo árduo e complicado, porém não é impossível.
Hoje, cuido do que é meu e da minha família há gerações e agora repasso para a minha filha, já sem medo, já sem culpa. Acredito que se ela for repassar para os filhos dela já terá algo de diferente: a liberdade.