Os primeiros dias depois do resultado das eleições de 2018 já vão confirmando as previsões dos analistas e comentaristas políticos a respeito das consequências de eleger um candidato com o perfil de Jair Bolsonaro para o nosso país. Também vão deixando bastante evidente a resposta para a pergunta que a esquerda vem se fazendo cotidianamente, igual uma mãe que se depara com um filho rebelde : onde foi que eu errei?
Entre muitos erros que são passíveis de reflexão, tem um que há muito vem sendo anunciado como catastrófico pelas mais diversas lideranças religiosas que compõe o campo da esquerda, especialmente as lideranças negras, o rechaço dos partidos de esquerda ao campo religioso significou o aumento da influência do conservadorismo no seu território mais fértil : o campo religioso.
A direita conservadora entendeu a importância de ocupar esse espaço. Obviamente que o fez a seu modo. O resultado não poderia ser outro : a influência da direita dentro das igrejas aliada a pouca importância que a esquerda deu em disputar politicamente a consciência dos fiéis , foi um dos principais fatores de impulsionamento e crescimento de Jair Bolsonaro. Não é sem razão que uma das suas primeiras ações após o término da disputa eleitoral foi comparecer pessoalmente à igreja de Silas Malafaia.
Silas Malafaia é a principal liderança da igreja evangélica Assembleia de Deus Vitória em Cristo, uma instituição que tem quase 60 anos de existência. O líder é conhecido como o “pastor mais polêmico do Brasil” , basicamente por apresentar um discurso inflamado contra a homossexualidade e não esconder suas posições a respeito de temas caros aos movimentos sociais, como é o caso da legalização do aborto. Malafaia se utiliza de uma performance autoritária quase a todo momento que prega sobre essas questões. Essa performance autoritária tem contornos muito próximos com a forma com que Bolsonaro se apresenta publicamente. O match entre Silas e Bolsonaro não é apenas no campo de crenças religiosas semelhantes, mas também no aspecto performativo.
Bolsonaro, portanto, ao se aliar a um líder religioso que tem uma alta publicidade, selou a sua própria imagem como uma liderança dos evangélicos. Esse imagem também foi equivocadamente reforçada pela esquerda, ao atribuir quase que automaticamente um perfil estereotipado ao eleitor do Bolsonaro a partir de suas convicções religiosas, de sua escolaridade, de seu nível de renda. Para a esquerda o eleitor de Bolsonaro é um “crente burro”.
Malafaia e Bolsonaro criam uma aproximação com seus seguidores, apoiadores, fiéis (e isso tudo pode ser a mesma coisa ou não) a partir de uma estratégia de aproximação com as pessoas.
Quem já viu uma pregação de Malafaia em vídeo compreende o que eu estou tentando demonstrar aqui. Ao assistir o pastor , a impressão que temos é que estamos conversando com ele frente a frente, cara a cara. Essa lógica também estava imprimida na campanha de Bolsonaro, não através da televisão, a qual ele evitou sempre que possível. O que Bolsonaro fez para criar uma narrativa de proximidade com seus eleitores se deu na palma da mão : os inúmeros grupos de whatsapp , os vídeos feitos em suas páginas nas redes sociais, com uma estética bastante simples, e seus comentários no twitter.
O apoio de Silas Malafia à Bolsonaro vem nessa mesma esteira. Em discurso inflamado defendeu as qualidades de Bolsonaro aliando essa narrativa ao antipetismo. Malafaia, entretanto, há um ano atrás utilizava esse mesmo discurso inflamado para dizer que faltavam características importantes para que Bolsonaro fosse presidente. Ou seja, o relacionamento passou por momentos conturbados antes desse match de sucesso. O que não é um problema, uma vez que acrescenta mais uma camada de humanidade em ambos, que admitem que não concordam em tudo mas que estão dispostos a deixar as diferenças de lado em nome de um projeto comum : a construção de uma nação temente a Deus.
A junção Bolsonaro + Malafia é a realização do sonho do conservadorismo político-religioso.
E, como já foi possível compreender nos primeiros dias pós eleição, o fato de Malafaia ter sido indiciado por lavagem de dinheiro, não é um problema para Bolsonaro. Assim como também não é um problema para o juiz Sérgio Moro, indicado para ser o grande chefe do Ministério da Justiça.
Moro, que em mais de uma entrevista afirmou que não tinha interesse em direcionar sua carreira para cargos políticos, aceitou o convite do presidente eleito sem grandes surpresas. No que pese ser caracterizado como um grande combatente da corrupção, não titubeou em compor o futuro governo ao lado de figuras controversas, que já foram citadas em esquemas de lavagem de dinheiro, por exemplo. O aceite de Moro escancara que seus interesses nos processos envolvendo o ex- presidente Lula talvez não sejam o mero combate a corrupção, mas sim a construção de uma narrativa em que apenas a corrupção cometida pelo PT é condenável.
Os indícios de corrupção, ou até mesmo a comprovação da corrupção, foi relativizado tanto por Bolsonaro quanto por Moro ao aceitar o convite para compor o governo. Parece que Moro deixou de achar repulsiva a conduta de caixa 2, uma vez que irá estar ao lado de Onyx Lorenzoni.
Lorenzoni, futuro chefe da Casa Civil, que confessou ter recebido dinheiro de caixa 2. Outra questão que chama atenção no quarteto que irá definir os rumos do país nos próximos anos é a pouca preocupação em manter a ideia de estado laico em pé. Bolsonaro deixa evidente que nos próximos anos a igreja evangélica terá atenção especial do presidente. A escolha de Bolsonaro de ir pessoalmente à igreja de Malafaia logo após as eleições evidencia essa questão.
Ou seja, estamos diante de uma mudança importante no que tange a forma com que os princípios constitucionais serão lidos.
Outra questão que também ajuda a ter uma ideia de como será o governo e o papel de Moro, Malafaia e Lorenzoni na gestão são as escolhas de eliminação e fusão de ministérios, outra pauta que teve destaque na campanha de Bolsonaro e que teve a simpatia e adesão imediata da população. O fato é que a máquina estatal é sim inflada. Existem ministérios em demasia, verdadeiros cabides de emprego que são utilizados como moeda de troca nas composições de governo. Contudo o fato do presidente indicar eliminar pastas fundamentais para a gestão do país, com critérios pouco razoáveis, também tem um conteúdo de acomodação política de seus aliados.
O Projeto Fênix, programa de governo do presidente eleito pelo PSL, em vários momentos menciona a questão da corrupção. Coloca explicitamente uma política de “tolerância zero com o crime, com a corrupção e com os privilégios.” Contudo, as primeiras ações do presidente eleito colocam essa máxima em dúvida. Não é exatamente uma conduta de tolerância zero com a corrupção ter como chefe da Casa Civil um homem que recebeu propina, por exemplo.
As primeiras ações de Bolsonaro e seus homens não chocam ninguém. Porém exigem uma atenção especial daqueles e daquelas que serão mais fortemente atingidas por essa nova composição de governo : as mulheres negras. Os três homens de Bolsonaro tem uma trajetória a
serviço da restrição dos nossos poucos direitos nas mais diversas áreas, na promoção da equidade racial e de gênero , por exemplo , Lorenzoni tem um trabalho histórico em tentar limitar a promoção de políticas públicas que reparam as distâncias sociais entre as mulheres negras e os homens brancos. No que diz respeito a questão da religiosidade, não esqueçamos que o próprio presidente é livre para manifestar a sua fé da maneira que melhor lhe aprouver, o que é incompatível com a ideia de um estado que se organiza a partir da liberdade religiosa enquanto princípio fundamental é que o chefe máximo da nação coloque suas predileções religiosas acima de todos, como o título de seu projeto de governo sugere.
Os quatros homens que irão comandar o país deixam evidentes as contradições entre o
programa de governo apresentado pelo Partido Social Liberal (PSL) e as pimeiras ações tomadas por Bolsonaro depois de eleito. Por outro lado, também confirmam aquilo que não era nenhum segredo: a partir do ano que vem as estratégias dos movimentos sociais precisão mudar. No lugar da luta pela promoção de direitos, estaremos resistindo pela manutenção do mínimo conquistado.