denuncia
Esse texto contém linguagem e aborda questões sensíveis como feminicídio, assassinato, discurso de ódio, racismo estrutural. Recomendamos, por favor, cautela às nossas leitoras. Obrigada.
O ano mal começou ou poderíamos dizer, mal terminou… E aconteceu mais uma, mais uma tragédia motivada pelo machismo, pelo ódio. Muito já se escreveu sobre o crime que vitimou preferencialmente mulheres, tratadas como… vadias. Falar dessas estórias não é tarefa fácil, primeiro porque estamos falando de pessoas. Não é estatística, não é notícia fria e distante que a gente por vezes precisa abstrair para sobreviver. É sobre nós, mulheres.
É sobre porque precisamos do feminismo.
O homem, responsável pelo assassinato de 12 pessoas, entre elas onze mulheres e uma criança, fez algo para além do impensável. Numa sociedade em que os conflitos são espetacularizados, mas não resolvidos de fato, fez questão de publicizar aquilo que considera a motivação do crime. Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, se sente penalizado e sufocado pela existência da ideia de feminismo e de suas conquistas como a Lei Maria da Penha.
Lamentamos e nos solidarizamos com as famílias das vítimas, acima de tudo. Cada uma dessas mulheres, nem sempre nominadas pela mídia, é uma de nós. É a amiga, irmã, companheira. É impossível e desrespeitoso dizer que somos todas Ismara, porque sua vida é insubstituível. Não pela violência da qual foi vítima mas por sua subjetividade, sonhos, conquistas, amores, amizades. Por outro lado, ela representa nesse momento uma triste realidade que nos afeta a todas – quem será a próxima?
Ramis de Araújo, por sua vez, não é tão pouco uma personagem. Ele é o vizinho, pai, companheiro, colega de trabalho, conhecido, o cara no ônibus. É quase uma tentação dizer que estamos diante de um monstro, mas a realidade é ainda mais atroz. Sidnei Ramis de Araújo é o homem do mesmo lado da calçada. O cara que, dependendo da situação, vai se esforçar para parecer cavalheiro. É a ameaça de todos os dias nas redes sociais e na próxima esquina.
É muito provável que, dias atrás, alguém que tivesse sido alertado sobre ameaça que ele representa, faria pouco caso. Tratariam a violência anunciada como piada, delírio ou quem sabe brincadeira. Apenas um rompante que passaria logo. Quantas de nós já não ouvimos, mesmo de gente muita próxima a nós e que conhece o que é o feminismo, que não há nada a se temer? Quantos pedidos de ajuda Ismara fez sem ser ouvida?
O modo de pensar de Ramis de Araújo, que também é ação, se caracteriza por um profundo desrespeito pelos direitos das “minorias”, pelo sentimento pueril e ao mesmo tempo imperativo e violento, porque se ofende profunda e mortalmente pelo fato de o principal objetivo do feminismo ser a destruição de privilégios, coisa que os homens de tradição, família e propriedade não querem em hipótese alguma fazer.
Mas falar de privilégio é pouco, porque se formos ao cerne desses acontecimentos nos colocamos de frente a um projeto de poder onde mulheres, negras, pobres, periféricas, lésbicas, bissexuais, travestis, feministas enfim… Não cabem. Precisam ser exterminadas. Precisamos do feminismo porque esse não é o mundo que queremos.
Não por acaso Ramis de Araújo pede desculpas à polícia pelos transtornos causados, apenas para usar suas palavras. Também dissemina um discurso datenesco de que “esse povo dos direitos humanos” prefere gastar mais dinheiro indenizando bandidos do que gastando com pais de família. Uma ideia que ganha contornos ainda mais monstruosos diante das notícias que chegam de Manaus, uma das maiores tragédias do sistema prisional brasileiro.
Para gente que pensa como Ramis, tudo é muito simples, mas preciso ir muito além para entender o que está acontecendo, começando pelo fato de que somos nós, população preta, aqueles que mais são privados de liberdade nesse país. Segundo o Brasil de Fato, o 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) publicado em 2014, há 61,7% a mais de negros no sistema prisional do que brancos, uma marca indelével de que estamos falando de nada menos do que racismo estrutural.
Segundo o Mapa do Encarceramento no Brasil, também de 2014, os jovens são a maioria. Quando fazemos o recorte de gênero, a situação continua alarmante para dizer o mínimo. O projeto Elas existem questiona: “É preciso fazer uma reflexão séria: Que benefícios trazem essas prisões? Quem se responsabiliza pelos filhos das presas? Que mulheres estamos prendendo? A que pode interessar essa política de massificação da prisão, que traz mais danos que benefícios?”
É por isso que também precisamos de feminismo.
Sem esses dados e seus recortes, não é possível tecer qualquer análise sobre o que estão chamando de massacre que se quer um “incidente” isolado no espaço e tempo. É preciso também, lembrar que não é prevista pena de morte nesse país, seja em quais circunstâncias forem. Os castigos e penas desumanos são igualmente inconstitucionais sendo responsabilidade do Estado zelar pela dignidade e integridade moral e física das pessoas no sistema, sem que haja prejuízo ou favorecimento de qualquer cidadão.
Ademais, é preciso antes de falar em massacre colocar na roda a discussão sobre a privatização e a administração do sistema prisional. Os modelos de referência foram implementados nos Estados Unidos durante a gestão Reagan e na Inglaterra, com Maragareth Thatcher. No Brasil o primeiro presídio sob o regime de parceria público privada é o de Riberão das Neves em Minas Gerais, implementado durante o governança de Aécio Neves com o slogan da eficiência e menor custo.
Mas o que seria eficiência, indaga a Pública em 2014. Certamente ela não está preocupada com a dignidade e integridade física das pessoas encarceradas, sob a gestão pública ou privada, o que obviamente adiciona mais uma variante à toda a discussão. Os números, denunciam o Brasil Post, por trás da estória são nada menos que uma tragédia anunciada e porque não, estruturalmente arquitetada? Afinal, a quem interessa, mais uma vez, a dignidade de gente preta e pobre? Gente que se considera nada menos que descartável, que se substitui facilmente e que se encarcera com a maior das permissividades?
Por essas e todas as outras tragédias – nomeadas assim para pintar os acontecimentos corriqueiros (ainda que inaceitáveis) como casos isolados – precisamos do feminismo. Mas não qualquer feminismo! Uma luta por direitos das mulheres que considere o recorte de raça e classe, que coloque como foco a pauta das mulheres trans assassinadas todos os dias.
Um feminismo que cobre dos órgãos públicos e do Estado que aí está sobre o tratamento das mulheres encarceradas, que pressione os políticos acerca de suas responsabilidades na gestão da saúde pública e no tratamento das vítimas de violência doméstica; Um feminismo que ouça e aja ao invés de apontar e silenciar mulheres negras periféricas, acusadas de culpa, seja pela roupa ou pela impossibilidade de sair dos relacionamentos.
#PrecisamosdoFeminismo para frear atitudes machistas e racistas de homens cheios de ódio contra as mulheres. Para não morrer mais, porque não admitiremos nenhuma a menos.