Por causa da pandemia, eu comecei a fazer terapia. Durante o meu processo de “cura”, eu compreendi que a raiz do problema era mais antiga do que eu imaginava. Nós, aqueles(as) que estamos sempre no fronte, temos uma dificuldade em aprender a olhar para dentro de nós e autoconhecermos sobre os sentimentos, as dores ainda com feridas em aberto e a lidar com traumas. Não só o trauma do racismo estrutural, o qual nos gera tantas questões emocionais, já que não passamos um dia sem ser alvo da violência racista, direta ou indiretamente.
A escrita sempre foi parte do meu autoconhecimento sobre os meus sentimentos nesse mundo-cão branco. Eu escrevo, porque nem tudo eu consigo verbalizar, por isso, quando eu era criança perpassada por tantas vulnerabilidades, não só a social. Eu imaginava histórias e pela imaginação eu as vivia. A criatividade sempre foi um modo de resistência. Hoje, já sou uma escritora mais experiente, embora sem um livro publicado, eu produzo vários textos – poemas, sátiras ou contos – e os publico nas redes sociais, meu laboratório estético em que experimento as potências da minha poética em construção, uma poética do desconforto, sempre foi.
Tanto pessoas próximas quanto outras desconhecidas, porém, que interagem nas redes sociais comigo, expressam que minhas palavras são fortes, toco o intocável. Fico lisonjeada, apesar de escrever muito, careço de melhor autoestima para me ver nesse lugar que muitos dizem que eu estou em termos de escrita. A escrita para mim é voz, se eu não escrevo, eu sinto-me sufocada, bate uma bad das grandes. Eu brinco com uma amiga, que há uma entidade por trás da minha escrita que me cobra oferenda, não importa a hora, a palavra tem que ser oferecida, crua ou cozida, amarga ou doce, ela tem que vir ao mundo, gestada, parida.
Escrevo porque sinto uma raiva constante, desde pequena. Uma raiva parecida com a de Audre Lorde. Em “Os usos da raiva: mulheres respondendo ao racismo”, Lorde discute como a raiva pode ser uma ferramenta de empoderamento para as mulheres negras em particular, em sua luta contra o racismo e o sexismo. Essa intelectual negra via a raiva como uma emoção legítima e poderosa que poderia ser usada para promover a justiça e a mudança social, desde que fosse expressa e utilizada de forma construtiva.
Desse modo, a escrita é a minha forma de usar a raiva de modo que ela não seja destrutiva, principalmente a mim mesma. Há textos que ainda não publiquei, nem pelos Cadernos Negros, antologia a qual inaugurei minha carreira enquanto escritora, e nem pelas redes sociais, creio que textos possuem funções no mundo, somos perpassados por tantos cotidianamente. Quando saímos às ruas, com quantos textos nos deparamos? Corpos também são textos, dizem tanto, já repararam?
Sobre o meu corpo, é um texto duro, às vezes, de ser lido. Não é fácil enxergar as minhas entrelinhas, meu texto não é tão previsível como muitos esperaram. Um dos motivos disso, é que poucos conseguem definir quem eu sou. Ah, não falo de estereótipos, eu falo de me conhecer de fato, quem gostar de definir meu corpo com estereótipos, com textos que não são meus e que se colocam como incontestáveis, é a miséria da branquitude, em específico a racista.
Escrever envolve um misto de sentimentos, para mim, causa alívio, é uma ferramenta do meu existir sem amarras nessa sociedade. Academicamente, a escrita é muito controlada, há regras que determina a qualidade, eu deturpo essas regras, e transformei a escrita acadêmica em uma escrita em que eu pudesse usar o meu próprio estatuto de escrita. Para a minha tese, eu criei um que será anexada nela.
Nenhuma instituição, nenhuma pessoa, nenhum medo poderá controlar a forma como eu escrevo, já que quando faço isso, a minha mente encontra um equilíbrio e eu me sinto numa conexão profunda com as coisas que digo, reflito e penso. Comece a escrever sobre o que sente, a escrever aquilo que tem vontade de dizer e por vários motivos não pode verbalizar pela voz. Escrevam! Independente da invisibilização em torno de tudo que produzimos, escrevam! Escrevam até terem a possibilidade de dizer em alto em bom tom quem são.
Recentemente, um conhecido leitor disse que não gostaria de se identificar na minha escrita, então, escrevam a ponto de que lhe teimam porque você escreve. Seja o dragão no horizonte ainda não colonizado do opressor, seja a vida em um outro mundo, que tanto investe em achar, mas que jamais alcançam. Seja a profundeza dos oceanos ainda não catalogada, mas por não ter sido ainda dominada causa cautela e medo em que pensa em mergulhar.
Em particular, eu gosto de ser a Diaba do Ocidente quando escrevo. Meu projeto de vida envolve o ato de escrita como explosivo para esta estrutura social que lança verdades brancas universais e que controla e limita tudo, epistemologias e afetos. Escrevo, porque não pertenço ao mundo da forma como o forjaram, escrevo para me manter viva, ora uso como tinta as lágrimas, ora as gargalhadas. Minha escrita orí-enta-me a ser o melhor que eu posso ser, principalmente para as pessoas que se veem em mim.