“Tudo que eu faço é póstumo, porque eu já morri por dentro” Triturador de Ego – Eu sou o Gabe
O que a morte? Talvez a pergunta mais clichê que existe, depois do “que é amor?”. Muitos levam a morte somente desse corpo físico e, independendo da crença de cada um, o que virá depois é um processo único, uma busca individual para quem teve o corpo morto. Quem fica, fica com a lembrança de tempos em tempos até não lembrar mais.
Esquecem que a pior morte é a que ocorre por dentro, aquela que ocorre com quem somos verdadeiramente em troca de ilusões descabidas e incompreensão nossa e de outros. E aqui dentro, aqui dentro de mim, eu já morri a muito tempo. Tudo que faço, tudo que falo, tudo que sou é póstumo, por que aqui dentro eu já morri muito tempo.
Escutei essa frase numa canção e ela nunca foi tão real em mim. O que resta daqui, nesse exato momento, é um corpo carnal, uma casca que sobrevive, se aguenta em pé diante duras penas e por dentro um vazio, um eco sem fim de alguém que um dia viveu um mundo.
Eu morri.
Morri todas as vezes em que me descobri em um novo mundo, lindo e deslumbrante, e não podia fazer parte dele, vivenciá-lo. Existia um muro, com uma pequena fresta que me fazia observar tudo de mais lindo, mas ele era alto demais para alguém que foi ensinada a não voar, a não escalar ou encarar, como eu não aprendi.
Morri todas as vezes que quis levantar minha voz, gritar sobre as injustiças vivenciadas e presenciadas e não pude fazer nada, por que eu era nada. Uma visão de outros sobre mim e que eu aprendi como verdade, pois minha voz era baixa demais para alcançar qualquer multidão, aguda demais para ser admirada, a injustiça não era minha e eu, cega, em vi a injustiça tinha nome e cor.
Morri todas as vezes que me abdiquei de mim para ser o que os outros gostariam só para me sentir parte, importante, e no fim descobrir que nada sou além de máquina. Morri no dia que me descobrir um robô.
Morri todas as vezes que tive que imaginar minha vida e situações dela numa janela, pois não me deram o direito de ser protagonista da minha própria história, me deram só o falso direito de imaginar. Morri todas as vezes que percebi que meu conto de fadas estava acabado antes mesmo de existir. Sabe aquele conto de fadas, os felizes para sempre? Sabe as princesas e seus príncipes? Não era pra mim, nenhum conto, nenhum príncipe, nenhum palácio, foi o que disseram, mas eu devia passar a vida acreditando que sim.
As princesas não são como eu que sentem, vivem, reclamam e gritam. Que querem um novo mundo, que querem construí-los, reconstruí-los e ter direito a reconhecimento. As princesas sempre se calam e esperam ser resgata e eu, considerada louca, já tinha ido embora do castelo em que me abandonaram.
Eu morro todos os dias, só hoje eu já morri três vezes.
Morri quando me entendi negra e renasci quando me senti negra. Há uma grande diferença entre entender e sentir. Entender qualquer um é capaz, branco, negro, mulher ou homem, porém sentir é diferente. A não ser que a outra pessoa se torne você, com as mesmas experiências e consciências, mesmas interpretações e vivência, ela não conseguirá sentir como você sente, mas aí ela já não é ela e você já não é mais você.
Sentir é o que nos faz único, é o que nos traz a consciência do mundo, é o que nos faz saber que somos seres humanos, capazes de erros, capazes de acertos, capazes de preconceitos e conceitos e que estamos em constante reformulação. O que sinto é meu, só meu e de mais ninguém.
O que eu sinto é o isolamento da mulher negra entre estereótipos carnais e conceituais. A dor de ser quem é e ser constantemente julgada por não ser boa o suficiente, por não ser aceita o suficiente, por não sorrir o suficiente.
Eu morri em todos os momentos de angustia, dor, tristeza e desespero e duvidas de si mesmo e sei que morrerei outras vezes, por vários dias. Contudo, talvez, de todas as mortes que tive, a morte que me levou a entender esse mundo cruel que vivo, esse racismo presenciado e doloroso, que me levou a me entender como mulher, como negra, foi a mais digna e linda que eu poderia ter.