Pobre, jovem e negro: esse é o perfil exemplar das vítimas de homicídio hoje no Brasil, que se por vezes não morrem através da ação da polícia à mando do Estado genocida, morrem através da guerra declarada contra as drogas que serve como pano de fundo para culpabilizar e consequentemente exterminar os jovens com este perfil, tendo muitas vezes como justificativa, o auto de resistência seguido de morte. No Brasil hoje, cerca de 60 mil pessoas são assassinadas todos os anos, dos quais cerca de 70% são negros e pardos.
Em maio de 2014 fará 8 anos desde que cerca de 500 jovens da baixada santista e capital, foram mortos pela ação de grupos de extermínio, que segundo a própria organização que surgiu após essa tragédia, composta por mães dos jovens mortos (Mães de Maio), parte desses grupos eram formados por agentes do estado. Até hoje, essas mortes seguem sem conclusão, com o inquérito dos casos arquivados por falta de provas. A maioria dessas mães, iniciaram de forma independente as investigações, e muitas chegaram a descobrir erros na perícia, no qual o Estado se fez de surdo, cego e mudo acobertando os policiais envolvidos nesses crimes. Em locais como o Rio de Janeiro, em que a Secretária Estadual de Segurança Pública deram início a planos de segurança como a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), o aumento do número de desaparecimentos de jovens negros já chegou ao patamar alarmante de 53%, tendo no meio deste ano como um dos casos que mais repercutiram na imprensa brasileira e mundial, a do pedreiro Amarildo, de 42 anos, que desapareceu da favela Rocinha (RJ) no dia 14 de julho, após ser visto pela última vez sendo abordado por policiais da UPP local.
Nossos jovens negros não são vistos como objetos de políticas públicas, são vistos como números nas valas, porcentagem de estáticas, e placas numeradas no necrotério. Para o Estado, nossos jovens não passam de uma fardo social, fardo este que é combatido através de ações higienistas desde a abolição da escravatura. Para a sociedade como um todo, muito mais chocante e triste que a morte dos 500 jovens em maio de 2006, foi o incêndio que matou 242 jovens na boate Kiss, em janeiro deste ano… Quem chora pelas nossas perdas? Quem explica a morte dos nossos homens? Quem arca com o todo o prejuízo emocional e físico que nos é deixado?
Para as nossas mulheres negras resta a certeza que nossos homens, filhos, sobrinhos, maridos, amigos, entes queridos muito mais que números, são vidas negligenciadas pelo poder público, nos resta o lamento por essas vidas perdidas de forma brutal, nos resta a responsabilidade de seguir em frente, de luto e lutando por todos aqueles que ainda vivem, nos resta o medo. Para muitas dessas mulheres, que na maioria das vezes ocupam os postos mais precarizados de trabalho, que vêm a vida de seus homens ceifados, resta a responsabilidade de manter a casa, os filhos, o ganha pão para o sustento dos que ficaram, resta principalmente a invisibilidade de sua dor: ignorada pela maioria das pessoas, que após essas mortes não vêem as consequências do genocídio da população negra para nós, mulheres negras que continuamos a viver tendo a morte como um acontecimento cotidiano, fazendo com que os prejuízos emocionais, sentimentais, psíquicos e físicos se tornem parte da nossa rotina.
Uma outra realidade muito frequente para os nossos jovens negros, é a do encarceramento, causado na maioria das vezes pela guerra contra o tráfico que o Estado financia, no qual continua tendo como premissa para as detenções o mesmo perfil: jovens, negros e pobres. O Brasil hoje possui a 4ª maior população carcerária do mundo, no qual 95% são pobres, e cerca de 70% são negros. O cotidiano das mulheres desses detentos, mães, filhas, sobrinhas, avós, namoradas, é cercado de humilhação e vergonha, no qual são submetidas a revistas vexatórias e invasivas com o “intuito” de barrar a entrada de entorpecentes e armas. Várias organizações denunciam que essas revistas são feitas de forma abusiva, no qual muitas vezes nem mesmo as crianças são poupadas dessa humilhação, tendo como real objetivo, mesmo que não declarado e anunciado, punir essas mulheres pelos crimes cometidos pelos seus entes, tendo a revista como uma das formas de estender a elas a pena dos detentos, á fim de inibir suas visitas.
Encontro nas Mães de maio, nas esposas e filhas dos detentos do Carandiru, nas mulheres que cotidianamente choram pela perda de seus homens, na esposa e nas filhas do Amarildo, em todas as mulheres que assistem o fim de seus filhos e companheiros sendo decretado pelo Estado, no qual os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro encabeçam a trupe dos higienistas de plantão, a força para resistir ao racismo que cotidianamente sofremos, encontro nelas inspiração para seguir em frente mesmo partida em várias, encontro a resistência necessária para continuarmos na luta por uma sociedade em que a cor de nosso pele não sirva para nos subjulgar, no qual não seremos mais obrigadas a procurar de necrotério em necrotério o corpo de nossos filhos!
A luta pelo fim dos autos de resistência seguidos de morte através da PL 4471 é nossa! A luta pela efetividade do Plano Juventude Viva é nossa! A luta pela entrada dos nossos jovens negros nas Universidade Públicas do país é nossa! A luta por uma assistência digna no atendimento hospitalar às mulheres negras grávidas, também é nossa! Enquanto a realidade ferir, enquanto houver mães e filhas de luto pelo seu homem preto, a luta será o nosso lema.
Como já teria dito certa vez um amigo querido, reconhecemos os irmãos através de sua força, mas principalmente pelas marcas de sua dor.
Imagem – Canal Preta Pariu