Minha avó dizia que quando era criança, mais ou menos no jardim da infância, eu era a aluna que chegava dançando e cantando na sala. Me lembro remotamente que fui assim até os meus oito anos, quando, enfim, me mudei para Recife. Recordo-me da primeira vez que eu cheguei, em como tudo era diferente, as ruas barulhentas, não haviam crianças, nem podia andar de bicicleta até tarde, de manhã não tinha bois ou cavalos e até os pássaros não cantavam como antes. Mas, eu estava ansiosa pela nova escola, afinal sempre foi o meu lugar de refúgio. O primeiro dia de aula foi estranho, diferente das minhas outras escolas, ali as meninas eram todas loiras e me olhavam diferente. Nunca me esqueço da única vez que tentei brincar com elas e fui expulsa, corri para o banheiro e chorei. Senti saudades de casa.
Passei apenas um ano nessa escola, fui para outra e aparentemente, em Recife, o problema nunca foram as escolas, mas as pessoas que estudavam nela. Era como se a cada tentativa de convivência, fossem me dado novos nós presos na garganta. Das lembranças que me acompanham, a comunidade feita para falar mal de mim em uma rede social, é uma das que jamais se apagarão… chorei, sentada do lado da cama… eu só tinha 11 anos, por que tanto ódio? Então, aprendi a ser calada, e os livros foram, até meu último dia do ensino médio, meus únicos companheiros.
Existe espaço para as meninas negras dentro de uma sociedade branca? Quando consegui formular essa questão, consegui olhar para trás e entender o porquê de tanto ódio ter sido destilado a uma menina de 11 anos. Quando você é a negra dentro de uma família branca isso piora, porque ali não se pode dizer em voz alta a sua cor, e a todo momento há várias tentativas de embranquecimento te engolindo. O cabelo da barbie, a cor da barbie, os olhos verdes da sua avó, a amiga loira que te chama de cor de coco… como se amar, se até do lado de dentro gritam para você: negro, não presta. Negro é o bandido da novela, é a prostituta que mata a mocinha branca, é a do cabelo de bombril, é aquela que nunca vai ser primeira opção.
“O preconceito existe porque os negros veem esse preconceito.”, “Somos todos iguais.”, “Teu cabelo é de fuá.”, “Acho que na outra vida tu era muito branca, porque olha como tu é preta que nem carvão.”, eles dizem. Na sociedade branca não há espaço para mulher negra, e por isso ela poda nossa voz e rouba nossos sonhos. Essa é a mesma sociedade que reza na missa e apedreja as políticas públicas. Gritam batendo panela que estão cansados de corrupção, mas emitem nota fria para pagar menos impostos. Falam que amam caridade, mas se for para pagar o salário-família da empregada doméstica, eles ameaçam demissão. Na sociedade branca, até tem espaço para as mulheres negras, na cozinha, limpando o chão, aceitando o resto de brinquedo da filha do patrão.
Djamila Ribeiro, em seu livro “Lugar de Fala”, coloca que as mulheres negras, por não serem nem brancas e nem homens, ocupam um lugar muito difícil na sociedade supremacista branca – por serem uma espécie de carência dupla, a antítese de branquitude e masculinidade. Se somos a melhor aluna da turma, aquela que passou em quatro universidades públicas, a que foi convidada pela maior editora nacional a publicar um livro, a filósofa política, a que não se cala para violência de gênero vinda de homem branco, seremos odiadas. Em meio a isso, entendi que ser odiada, é estar fazendo bem-feito o que me propus a fazer: reluzir na minha voz, minha descendência preta. Comecei esse texto querendo falar sobre o porquê de tantas meninas negras preferirem serem vistas como “branca escura” a se nomearem “negras”. Antigamente, para evitar dissabor, os “sem preconceito” chamavam os negros de gente de cor. Eu te pergunto, tu tem cor? Cor negra clara, negra escura, negro âmbar, no final, é tudo negro – tataranetos das terras africanas. A vergonha de se dizer negro é filha do racismo estrutural que nos amordaça enquanto o sangue dos nossos ancestrais derramam sobre nossos pés. Gritaram-me negra. E negra, sou.
Imagem de destaque: Foto de uma das cenas do filme Daughters of the Dust (Julie Dash – 1991), Meca