Há algum tempo, Aline Djokic nos agraciou com o texto A Mulher negra, o cristianismo e o mito da redenção onde negava veementemente o rótulo de redentora da raça negra, amaldiçoada por tradição cristã – inferior por tradição científica, por ter dado a luz a um filho com fenótipo predominantemente branco.
Fui mãe menos de um mês após completar meus 18 anos, no ano de 2009, muito distante da época de ouro das teorias eugenistas, das políticas de branqueamento não veladas baseadas em um racismo científico plenamente aceito e ainda mais distante da época em que uma interpretação bíblica poderia ser usada como justificativa clara e não refutável para escravizar e inferiorizar a nós, os negros. Mesmo assim, é doloroso notar dia após dias as marcas mentais que essas construções deixaram até hoje.
Meu filho é branco – ninguém duvida disso em um primeiro olhar.
Não terá que crescer sob a dúvida de sua identidade como viveu sua mãe. Não irá descobrir que é negro apenas na idade adulta quando sairá do ciclo periferia/escola pública e notará que não se parece com as pessoas ao redor. Nunca será chamado de macaco na rua como já aconteceu com sua mãe. Nunca alguém deixará de se relacionar com ele por causa da sua cor, como já aconteceu com sua vó e com sua tia. Não herdou minha cor, meu nariz e meu cabelo crespo. Parece alguém totalmente distante de sua avó e tias-avós maternas quanto as características.
Nesses quase 6 anos de maternidade, notei um fenômeno constante que sempre me doía demais, me matava de pouco em pouco mas mesmo assim eu erguia a cabeça e continuava. A falta de meus traços e dos traços de minha mãe em meu filho apenas causa estranhamento para pessoas brancas que se surpreendem e desacreditam que um garoto com aquele cabelo, nariz e pele pudesse ser meu filho ou, o que causa ainda mais surpresa, neto da minha mãe, porém jamais foi fator de estranhamento dentro de minha família, ao invés disso, já nasceu como um fator de orgulho, um motivo a celebrar.
Minha mãe, negra de pele escura casada e que teve todas suas filhas com um europeu branco, desde o primeiro ano de idade do meu filho tem orgulho de apresenta-lo a família e amigos. Sempre me tira do canto em que estou com o garoto para exibi-lo as pessoas, incluindo negros como ela, usando a frase “olha, morram de inveja, meu neto é branco do cabelo liso!” ao que se segue sorrisos largos e risadas eufóricas. Tornou-se uma tradição, uma marca registrada. O mesmo comentário por 6 longos anos, os mesmos sorrisos de contemplação, a mesma reprodução de uma piada racista velada, a mesma impotência da minha parte de tomar partido e responder na hora “E se não fosse? Qual o problema?!”.
Nesses seis anos, tive que lidar com minha mãe colocando meu filho em um pedestal em que nunca estive e nunca me colocaram quando criança. A vi passar os dedos nos cabelos lisos dele e agradecer, ressaltar sua beleza de infinitas formas e modos. A vi dar argumento para que pessoas brancas perdessem o receio de emitirem suas opiniões ao ouvir tamanha exaltação e viessem comentar com um sorriso no rosto sobre minha “sorte”, sobre como “acertei”, sobre como meu filho “puxou um sangue bom”. Durante esses seis anos quis ter força para sentar e conversar com minha mãe. Perguntar se ela não percebe que suas filhas não são o que seu neto é e que colocar a falta de semelhança que ele tem com ela como uma vantagem e motivo para comemoração é diminuir tudo o que sou e que ela também é. Cada vez que acontece, procuro forças para não perder a cabeça e não questionar de modo agressivo qual o tratamento que meu filho receberia caso fosse negro do cabelo crespo como a mãe ou como a avó – Ele então teria puxado um “sangue ruim”? Eu teria “errado” e tido “azar”?
Consigo ver minha mãe fazendo o papel da humilde vó que ergue as mãos aos céus em agradecimento a dádiva de ter um neto lido como branco no quadro A Redenção de Cam de Modesto Bronco. Vejo toda minha família encaixada nesse quadro, o mesmo quadro que foi apresentado no I Congresso Internacional das Raças de 1911 em Londres, congresso eugenista cujo a máxima de João Batista Lacerda, médico e cientista adepto do ideal de branqueamento resumia o racismo, o apagamento, o genocídio, o fim da auto estima que toda aquela ideologia pregava – “O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”.
Mulheres negras mestiças, como eu, deveriam se relacionar e dar netos brancos as mulheres negras brasileiras para assim dar ao país o que ele precisava para sair da estagnação, para chegar a modernidade e se desenvolver ou, em outras palavras, para aproximar ao máximo o povo brasileiro do padrão europeu visto como geneticamente superior. Esse era um projeto antigo da elite, uma discussão que rondava as academias e grandes centros do saber, mas que conseguiu seus maiores parceiros e colaboradores entre famílias que o quadro apresentado no congresso retrata – povo, mulheres negras de origem humilde, negros e negras da periferia.
Curiosamente, todas as irmãs e irmãos da minha mãe acabaram se casando com homens e mulheres brancas e seus filhos, negros e negras de pele clara como a minha mas que jamais serão lidos como brancos em sua maioria seguiram a ordem compulsória das coisas como a teoria queria que fosse.
Esse texto não pretende ser uma ode ao amor afro centrado, pois não creio que colocar a culpa do sistema racista nas mulheres e homens que não se relacionam exclusivamente com pessoas negras seja uma solução. Assim como não acho que mulheres negras tem como missão ou obrigação a tarefa de gerarem e criarem crianças negras empoderadas – maternidade tem que ser escolha e jamais imposição. Nem toda mulher negra se relaciona com homens e nem toda mulher negra quer ser mãe. Todo amor ou ação que me é imposta também me é ao mesmo tempo descartável.
O ponto está no fato de que muitos brancos já vieram a mim tentando apontar minha família como o exemplo máximo da falácia dos negros racistas, os negros que odeiam negros mais do que qualquer branco, negros que não querem ver suas filhas namorando com negros, que fazem piada de si, que se diminuem e reproduzem discursos de inferioridade em suas falas. Cometem essa violência sem entender a culpa que tem em toda essa reprodução do racismo, culpa essa que vem de anos, de séculos de opressão e inferiorização, de séculos e séculos onde os planos da elite branca se apropriaram de todos nossos espaços de luta, nossos espaços públicos, nossos conceitos mentais e conseguiram fazer uma criança negra não se reconhecer como digna de festejos e elogios, crescer e não querer que seus filhos e netos vivam com a mesma dor e com a mesma preterição em todo e qualquer campo.
Ao mesmo tempo que imagino o que meu filho sofreria caso fosse negro, consigo perfeitamente imaginar o que cada uma das minhas tias e tios e o que minha própria mãe viveu durante uma infância onde sua existência em si era considerada feia e inferior – por mais que nada falassem em sua cara, por mais que a tratassem como igual, estavam lá os padrões, as revistas, a televisão, os olhares tortos, as histórias sobre os vencedores contadas na escola, as histórias infantis, vários elementos de qualquer infância onde as crianças negras não se reconhecem e que jogam em nossa cara o tempo todo como a existência dessas crianças não era o desejável e o louvável.
Reconheço os imensos privilégios que meu filho terá na vida por ser primeiramente um homem e depois por ser lido como branco, reconheço esses privilégios assim como reconheço o meu próprio privilégio de ser negra de pele clara, que sente o racismo de outro modo, com uma sutileza que fere a alma mas que não pode ser comparada a opressão que uma negra de pele escura sofre. Sei desses pontos e meu papel como mãe militante é fazer com que meu filho cresça também ciente desses privilégios, mas que por mais que a sociedade lhe jogue isso na cara o tempo todo, ele não tem o direito de se julgar acima de qualquer ser.
Meu diálogo nesse texto é com todas as mulheres negras que tem qualquer relação de grande afeto com uma criança – seja mãe/avó/tia/madrinha/vizinha, isso não importa. É uma tarefa dura se posicionar politicamente quando o assunto envolve nossos filhos e crianças amadas: por mais que possa parecer elogioso para uma mãe ver um filho sendo super valorizado e celebrado seja pelo motivo que for é importante atentar para as questões raciais que um simples elogio pode carregar.
Crianças negras crescem vivendo com essa discrepância de tratamento, com a falta de elogio, com a falta de carinho e representatividade e se tornam adultos que, conscientemente ou não, preferem não perpetuar o sofrimento em suas crianças. As crianças negras têm que ser celebradas ao máximo pois são frutos de nossa desobediência ao que nos foi imposto, são sinais de que as medidas sistemáticas e institucionais de embranquecer o Brasil falharam, são símbolos de resistência e tem que crescer sabendo disso, vendo quanta beleza há em sua pele, seus traços, seu cabelo, sua ancestralidade e desejando que seus filhos saibam o valor e se orgulhem disso também.
Não vamos deixar que joguem a culpa do racismo em nossas companheiras e companheiros negros! Se hoje uma avó negra se alegra e agradece seu neto branco é graças ao embranquecimento psicológico que lhe foi jogado goela abaixo desde a infância, é a tentativa de proteger seus descendentes de um sistema opressor e violento causado pelo BRANCO!
Precisamos deixar cada vez mais marcado, e que seja a fero se necessário, que não estamos aqui para cumprir as metas de uma política eugenista do século passado, não estamos aqui a serviço de uma elite que quer há 5 séculos nos embranquecer por todos os meios e nem estamos aqui para trazer a redenção de uma raça que sempre julgaram amaldiçoada e inferior. Não traremos redenção em nossos ventres porque não há o que redimir!
Meu filho branco nunca apagará toda a minha luta, nunca apagará minha negritude e vai crescer sabendo o quanto nós, mulheres negras, estamos lutando desde antes dele nascer, desde antes de todas essas teorias serem forjadas, para conseguirmos nossos espaços e reconquistarmos a auto estima que anos de apagamento nos tiraram e que hoje ele consegue sem esforços por ser reconhecido como igual pelo opressor.
Imagem de destaque – Redenção, Modesto Brocos. Reprodução web.