As minhas lembranças da infância são todas alegres, apesar de eu ter sido uma
bebê bem chorona, coisa que sou até hoje. Nas fotos e vídeos que eu vejo, noto um
sorriso genuino em mim, estava sempre rodeada de amigos. Eu era aquela criança
que ia na casa de todo mundo, mal parava em casa. Com uns 11 anos, eu já era a
que andava de bicicleta pra cima e pra baixo, inventava brincadeiras, eventos,
gravava vídeos com as minhas amigas (the vi e nat show, nosso quadro no youtube
ensinando a dançar hannah montana entre outras coisas), queria reunir todo mundo
da sala e do bairro, até gente que eu não gostava muito. Se pudesse descrever a
minha infância com uma música seria “Quem tem um amigo tem tudo” do Emicida,
um sambinha de felicidade e gratidão.
Na sexta série, me mudei de cidade e no novo colégio sofri bullying e racismo pela
primeira vez. Já tinha escutado antes pessoas perguntando se eu era babá do meu
irmão branco ou filha da empregada, apesar de não entender na época, mas, na
escola, o bullying era mais velado, porém mais intenso. Tiravam muito sarro do meu
cabelo, do volume dele principalmente, então comecei a ir de boné para aula, porém,
começaram a tirar sarro do boné, então comecei a alisar meu cabelo. Sempre
enfatizavam que me achavam a mais feia da sala e como ninguém queria ficar
comigo ou como eu era a amiga feia no grupo de meninas. Desde então, eu comecei
a alimentar um auto-ódio e chorar desejando ter outro cabelo e outra cor de
pele. Não aguentava ver 1 cm de raíz enrolada nascendo, já queria alisar ou passar
chapinha, aquele 1 cm me fazia chorar e me dava raiva. Até hoje me emociono com
o discurso de Malcolm X “Quem te ensinou a odiar a si mesmo”:
Quem te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da sua pele
de tal forma que você passa alvejante para ficar como o homem branco? Quem te ensinou a
odiar a forma do nariz e a forma dos seus lábios? Quem te ensinou a se odiar do topo da
cabeça para a sola dos pés? Quem te ensinou a odiar pessoas que são como você? Quem te
ensinou a odiar a raça que você pertence, tanto assim que você não quer estar entre outros
como você?
Fiquei 2 anos nessa escola e depois minha mãe me colocou em outra. Era a oitava
série, novo ano atual, estava super animada para o primeiro dia de aula, pois a
minha amiga do condomínio, também negra, iria estudar comigo. Nos primeiros dias
de aula ela já tinha um crush e eu ficava admirada com a confiança, ou talvez o não
auto-ódio dela, porque ela sempre acreditou que seria capaz de namorar as pessoas
que gostasse, a não ser que não quisesse. Dito e feito, ela começou a namorar e eu
até comecei a pensar que eu também poderia beijar alguém que eu gostasse, coisa
de adolescente que nunca tinha beijado. O fato é que todas as vezes que eu falava
de algum menino que eu gostava, todos brancos, as pessoas falavam que ele jamais
gostaria de mim.
Eu que sempre gostei de estudar e escrever, fui perdendo o interesse nessa nova
escola, pois alguns professores agiam de forma racista, interrompendo a aula para confirmar que eu era irmã da minha irmã branca, questionar se miha mãe tinha
traído meu pai, ou me obrigar a ler a apostila por eu ser a mais escura. Além disso,
havia um professor que sempre ia até a minha carteira dizer que eu nunca passaria
em nenhuma faculdade, porque eu era burra, então era melhor nem me inscrever
em nenhum vestibular. Juntando isso com fofocas e comentários maldosos dos
meus colegas de classe, eu comecei a odiar a escola, odiar estudar e arrumava
briga com todo mundo. Além de ver nessas brigas um modo descontar a raiva que
eu passava em casa por motivos pessoais.
Além de alisar meu cabelo eu fugia do sol, apesar de morar na praia. Se eu tivesse
que ir à praia eu ia de roupa e ficava embaixo do guarda-sol em uma tentativa de
ficar mais clara. Também passei limão na pele para ver se clareava, além de usar a
base da minhã mãe branca pra ficar com o rosto claro. Hoje em dia vejo que fiz um
“ótimo trabalho”, porque a minha pele era super desbotada e bem mais clara do que
hoje em dia, que eu não moro na praia, mas não fujo do sol e nem tento clarear a
pele de outra forma.
No primeiro colegial entrou um menino negro na sala e imediatamente as pessoas
falaram que finalmente tinha chegado alguém que combinasse comigo para eu
finalmente beijar na boca, como todo mundo já tinha feito. O fato é que, por motivos
financeiros, esse garoto era popular, o famoso negro da casa grande. Faziam piadas
racistas, mas sempre levavam na amizade e na brincadeira, para parecer que
ninguém ali era racista, apenas bons amigos. Quando esse menino demonstrou
gostar de mim percebi a revolta nas garotas brancas, ficaram apenas chocadas.
Perdi o bv com ele e já “namoramos” brevemente, coisa de adolescente. Durante
todo esse período eu tinha que ler nas redes sociais que eu era feia demais pra ele,
que ele merecia coisa melhor e que a menina branca que gostava dele iria passar
lama negra na cara pra ver se assim ele iria gostar dela. Fui sempre ridicularizada e
me sentia a mulher mais impossibilitada de ser amada neste mundo, até por isso
rejeitei todos os homens que já disseram gostar de mim. Nunca acreditei e ainda
tenho dificuldade em acreditar.
Após ir estudar no Rio de Janeiro e depois me mudar para outra cidade grande, eu
fui me libertando de todas as imposições racistas que existem e deixando de ouvir
as vozes na minha cabeça da época da adolescência. Demorei, mas parei de alisar
o cabelo e odiar a minha pele, muito pelo contrário, passei a amar. Porém, uma
coisa difícil de se desvencilhar é de querer ser gostada, e não digo no sentido
amoroso, mas no sentido geral. Somos tão menosprezados, agredidos,
desacredidatos, excluidos e oprimidos que entramos na busca implacável de agradar
a todos, de fazer com que sintam orgulho da gente, de sermos elogiados, de
fazermos parte dos espaços etc. Até me recordo da paciente no livr “Tornar-se
negro” da psquiatra Neusa Santos Souza, que queria passar em medicina na
faculdade mais difícil do país pelo simples motivo de que assim ela se sentiria a melhor em alguma coisa, se sentiria finalmente vitoriosa.
Ao querer ser aceita, a mulher negra sofre uma insatisfação eterna, pois sempre
haverá um motivo, um resquício de racismo em alguém que não permitirá que ela
seja amada e valorizada. Não é à toa que o feminismo negro tem pautas
completamente diferentes do feminismo branco. Ainda lutamos por coisas mínimas.
É possível, com terapia, aquilombamento, representatividade, leitura de escritorxs
negrxs e tempo, as nossas feridas vão cicatrizando de tal forma que não
esqueçemos que elas existem, mas nos fortalecemos, não na garra, mas no amor
próprio, no orgulho de nós mesmos, no amor aos nossos semelhantes, na criação e
fortalecimento da nossa identidade. Passamos a ser quem somos e não quem
querem que sejamos e, com o tempo, fazemos as coisas por nós mesmas. Nos
amamos, nos fazemos felizes. A partir disto, conseguiremos ser amadas, mas
precisamos saber que, por tudo o que passamos a vida inteira, a mulher negra ainda
é a mais solitária, ainda tem dificuldade em ser vulnerável, em ser cuidada, em ser
amada. Uma vez ou outra a cicatriz lembra a gente do que podemos ouvir e sentir de
novo. Como diz a música “Negras Memórias” de Diogo Nazareth: Negro é bela moeda. Vida que pesa nas costas e demora a passar.
Imagem destacada: Padrinan, Pixabay