Uma senhora negra, de riso simpático, cabelos brancos destacantes e uma postura de líder. Sentada em um banco de madeira, sediado na igreja católica da comunidade, anotava em seu caderninho de papel pautado o significado de bem viver. Esse é o primeiro retrato que você precisa ver.

Nascido da cultura indígena, o bem viver tem como principal objetivo uma vida em harmonia com a natureza, a comunidade e o território em que se vive. Historicamente, os povos indígenas e originários das terras na América Latina têm, não só pregado essa filosofia, como também disseminado essa vivência em suas comunidades. Ao tratar de bem viver, é preciso entender que, para se alcançar essa filosofia, é necessário o combate às injustiças e desigualdades sociais, historicamente vividas por pessoas negras.
Segundo dados do governo da Bahia, o território de identidade do Sertão do São Francisco consta, em sua totalidade, 10 municípios, como Juazeiro, Casa Nova, Sento Sé e Curaçá, com mais de 61.765,59 km² de áreas. Sendo a cidade de Juazeiro, na Bahia, uma das principais cidades em termos de economia, por meio da fruticultura e, nas comunidades, as práticas de pesca e agricultura familiar, além do manejo de caprinos e ovinos. A cidade, uma das maiores da Bahia, também conta com uma histórica luta de ativismo negro, com grupos de movimentos sociais e acadêmicos e de povos das comunidades quilombolas e de terreiro.
A vida nas comunidades, principalmente ribeirinhas — as que vivem à margem de rios —, são carregadas por esses conceitos de vida. Em Juazeiro, cidade da região Norte da Bahia, uma comunidade quilombola e ribeirinha das margens do Rio São Francisco vive, em sua maioria, por meio do que a terra e as águas dão. Porém, mesmo em meio à vasta riqueza natural que lhe cerca, têm lutado diariamente por condições básicas de sobrevivência para o alcance do tão sonhado bem viver.
OVÍDIA DE SENA

Na comunidade quilombola do Rodeadouro, as mulheres negras estão à frente das lutas e das lideranças populares e culturais. Aquela senhora que você visualizou, tomando notas, é Ovídia de Sena, nascida, crescida e criada na comunidade quilombola do Rodeadouro. Dona Ovídia é referência na comunidade quando se trata de ativismo, cultura e fé.
Mesmo aos 77 anos, ela coordena o grupo de Samba de Veio do Rodeadouro, manifestação cultural herdada de família e os ativismos por melhorias realizados na comunidade, que, mesmo tão antiga e importante, ainda enfrenta lutas por condições básicas de sobrevivência. “A comunidade é importante, porque moramos às margens do Rio São Francisco, mas nós temos muitas dificuldades a enfrentar… Comunidade carente, só temos uma escola, não temos nenhum posto, nenhuma creche. Mas desde nova enfrento esses problemas e fazendo de tudo pra melhorar.”, denuncia Dona Ovídia.
Ovídia faz do Samba de Veio uma forma de ativismo cultural e manutenção da cultura quilombola e ribeirinha. Usa a arte como arma de luta e demarcação de territorialidade. Desde os 12 anos ela sambava ao lado da tia e, após a sua partida, assumiu a responsabilidade de manter a cultura viva. “Hoje nós temos crianças, jovens que participam conosco e queremos enfrentar isso aí até quando Deus nos determinar”, relata.
Dona Ovídia e as mulheres da comunidade do Rodeadouro têm lutado historicamente em busca do bem viver, semeando o que se entende de mais puro no sentido de comunidade. Sendo um o alicerce do outro, respeitando a sabedoria dos mais velhos e acolhendo os mais novos. A comunidade tem se preparado para a 2ª Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que acontecerá em Brasília em novembro de 2025. Dona Ovídia, entendendo a importância da ação coletiva, busca incentivar as companheiras da comunidade. “Eu acho importante para reivindicar os nossos direitos, para que nós possamos também crescer sem essas faltas de oportunidade”, finaliza entusiasmada.
CERES SANTOS

A 2ª Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver tem mobilizado as mulheres do Sertão do São Francisco no sentido de mostrar a força do ativismo local. Gaúcha, Ceres Santos é jornalista e professora universitária, uma das principais mobilizadoras das mulheres do Sertão para a marcha em Brasília. Responsável pela criação do Comitê Sertão do São Francisco. Ainda adolescente, Ceres foi levada ao ativismo através de inquietações provocadas pelo racismo. Nos anos 90 mudou-se para a Bahia e se manteve ativa no movimento negro baiano.
Foi a partir da Marcha das Mulheres Negras que aconteceu em 2015 que Ceres percebeu uma lacuna na comunicação sobre o ato, que foi considerado de grande impacto. Inquietada por isso, resolveu criar, oito anos depois, junto à professora e também pesquisadora Marcia Guena, um projeto de extensão na Universidade em que atua, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em Juazeiro, que tem como objetivo dar visibilidade à 2ª Marcha das Mulheres Negras através do jornalismo, em especial a assessoria de imprensa, buscando também trazer a ideia de bem viver para o centro da pauta.
O projeto, que tem pouco mais de um ano e ainda enfrenta dificuldades, vem causando impactos no ativismo negro do Sertão com ações mobilizadas entre várias cidades e povos do território. “A criação de uma equipe da sociedade civil e governo municipal para a elaboração de um edital para a legalização dos terreiros de Juazeiro. Afora isso, já conseguimos reunir mulheres de cinco municípios do Sertão. Ou seja, apesar da fragilidade, conseguimos consolidar uma rede de mulheres negras”, relata Ceres.

“Estamos propondo um outro modelo, o Bem-Viver, proposto, inicialmente, pelas nossas irmãs indígenas latino-americanas. Esse projeto não só contempla, respeita as vozes da diversidade, como prioriza a relação com a natureza, com o meio ambiente e sugere novos caminhos para o empoderamento político e econômico, por exemplo, das mulheres negras e latino-americanas.”
– Ceres Santos
ISRAIANE BRITO

O ativismo negro tem se fortalecido entre as jovens do Sertão do São Francisco principalmente por meio da vida acadêmica, mas também por meio do trabalho. Foi através do trabalho como trancista, após diversas situações de racismo, que a estudante de Pedagogia e pesquisadora de raça e gênero, Israiane Brito, viu no mercado da estética uma forma de luta e uma oportunidade de marchar por reparação e bem viver.
Israiane viu nas tranças, inicialmente, um modo de esconder o volume dos cabelos para evitar sofrer racismo na escola. Mas, ao chegar ao ensino médio, ela percebe que as tranças poderiam não só se tornar uma profissão, como também uma forma de ativismo, resistência e uma forma de autocuidado e um modo de se pensar o bem viver para mulheres negras, fugindo da ideia capitalista de apenas mercantilização da estética, aliando o ativismo e o mundo das tranças à pesquisa acadêmica em raça, classe e gênero. “Era até uma insegurança, antes de chegar aqui, de acreditar que eram mundos opostos, de não conseguir conversar sobre isso. Só que aí é muito daquele lugar de você própria abrir essas janelas”, relata.

Ao falar da comunicação sobre o ativismo negro nessa região, a trancista ainda enxerga dificuldades de disseminação das informações sobre ações e trabalhos relacionados à pauta, mas percebe que há um movimento acontecendo, principalmente na cena artística e cultural. “Dayane Menezes é uma cantora que admiro muito, Xaro, que é uma mulher negra que tá com um projeto novo do babado voltado para as questões de diversidade de gênero”, conta entusiasmada. Israiane tem feito parte de uma equipe de comunicação formada no projeto do comitê da 2ª Marcha no Sertão, onde consegue colocar suas pesquisas e trabalho estético em marcha. Mostrando que o ativismo negro no Sertão é tecnológico, acadêmico, cabe todas as mulheres, se forja de diversas maneiras, existe e sempre esteve em marcha.
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Autoria: Laíse Ribeiro
Desgner: Helida Costa
Edição: Wellington Silva
Desenvolvimento: Will Lopes
Este conteúdo integra o projeto Narrativas em Marcha, Comunicando o Futuro, realizado por meio do Edital Nilma Bentes, do Fundo FASE, e com o apoio do Grupo Mãe Andresa. Saiba mais em blogueirasnegras.org/narrativas-em-marcha-comunicando-o-futuro.
