As descobertas da minha querida amiga Natália Neris sobre pornografia de vingança (conhecida pelo termo em inglês revenge porn) estão no livro O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil, do qual ela é coautora juntamente a Mariana Giorgetti Valente, Juliana Pacetta Ruiz e Lucas Bulgarelli. A obra está disponível gratuitamente em http://goo.gl/lFAA3D.
A pesquisa – que partiu do diagnóstico da gravidade da pornografia de vingança e aparente ausência de soluções jurídicas para seu enfrentamento – buscou compreender o que ocorria com os casos que acessaram ao judiciário paulista. Os autores foram surpreendidos com resultados trazidos por atrizes que estavam “fora” deste universo: os coletivos de mulheres negras atuantes em periferias paulistanas. Natália conta que a importância de se refletir sobre interseccionalidade foi trazida por tais grupos. “Nós definimos que a pesquisa seria sobre pornografia de vingança, mas quem trouxe o ponto de vista dos impactos de determinadas soluções para o problema em regiões marginalizadas foram os coletivos feministas de mulheres negras”, explica.
Um dos primeiros fatores que os autores do livro perceberam é o desuso do termo pornografia de vingança na descrição das 90 decisões coletadas no Tribunal de Justiça de São Paulo. Os casos variam entre as instâncias penal e civil. Em maioria, estão ligados à extorsão, a estupro ou ameaça de exposição de imagens, que não necessariamente são disseminadas. Das 36 decisões de instância penal, apenas em duas se aplicou Lei Maria da Penha – apesar de sua possibilidade em um universo muito maior. “Talvez isso aconteça porque a violação de intimidade não seja entendida como violência psicológica ou moral, logo, não registrada no âmbito da Maria da Penha. Esse é um resultado surpreendente e esta uma hipótese que demanda novas pesquisas”, diz Natalia.
Com esse dado em mente, as pesquisadoras passaram a analisar a interseccionalidade, ao tentar entender as saídas disponíveis para esse tipo de problema, que obviamente variam de acordo com outros marcadores sociais, como idade da vítima. As nuances são várias. Nos casos envolvendo adolescentes, por exemplo, exige-se que nas imagens haja exposição de genitália ou relação sexual explícita para enquadramento no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o que nem sempre ocorre nos casos de violação de intimidade. “No caso do ECA, se o desembargador entender que o agressor incorreu com dolo, ou seja, intenção, a pena é mais dura. Caso contrário, há diminuição ou absolvição”, esclarece. Os dados demonstram reversão de penas nesses casos, demonstrando que o ECA parece ser menos protetivo nos casos de exposição de material íntimo de adolescentes.
As pesquisadoras, após diálogo com os coletivos feministas de mulheres negras, entenderam que a saída punitiva está longe de ser a solução, especialmente nas periferias, onde a relação com instituições policiais é bastante problemática e os garotos não têm acesso a formas de repensar as estruturas de machismo. Nesse sentido, as estratégias punitivas pouco funcionariam. “A penalização é insuficiente. Há uma questão importante de acesso à justiça nesse contexto. Além disso, a criminalização não parece ser uma estratégia ampla para termos uma nova forma de entender a sexualidade”, afirma Natalia.
As pesquisadoras identificaram também a inadequação do termo “pornografia de vingança”, pois, na maioria dos casos, a exposição pública e não consentida do corpo da mulher nada tem a ver com vingança e, inclusive, pode ser uma ação dos atuais parceiros. Segundo Natalia, “o homem quer dinheiro, sexo. A violência tem relação com quebra de expectativas ou frustração de suposto poder que ele imaginava ter”.
O livro, felizmente, não aponta um caminho definitivo. Uma questão tão complexa merece ser explorada extensivamente, de diversos ângulos e áreas de pesquisa. Perguntei à Natalia se, de fato, essas questões poderiam ser resolvidas na escola – o que, para mim, soa um tanto quanto ilusório. “A escola não é um espaço neutro. Dentro dela também estão presentes os fundamentos do machismo. Temos de pensar em múltiplas soluções, porque o problema é estrutural. Leis, mesmo as que tentem superar os problemas que identificamos na aplicação da Lei Maria da Penha e ECA ou criem tipos penais novos, podem ser importantes, mas não encerram a luta com sua aprovação. Temos, enfim, um longo caminho a percorrer para a reversão de um quadro que culpabiliza vítimas por exercer sua sexualidade” aponta Natália.