Na sociedade ocidental, eurocêntrica, de lógica individualista e binária que vivemos, em que cada um/a deve salvar a si mesmo/a, é realmente complicado entender que o nosso corpo se tornou uma arma (como bem nos disse em entrevista Achille Mbembe, na semana passada). Como fazer as pessoas entenderem que ficar em casa pode salvar vidas em coletivo, se tudo que essa sociedade construiu para si foi em nome do sucesso e do fracasso de um indivíduo? A ideia de meritocracia reside nisso. O milagre, literalmente, vendido em vários altares neopentecostais, estimula isso. A publicidade não faz diferente: “só depende de você”. O modelo de ensino mercantil e focado, integralmente, nas provas dos vestibulares ou escolas militares, vai pelo mesmo caminho. Não somos ensinadas/os a viver em COMUNIDADE, a família nuclear burguesa quer salvar a própria pele (mantendo suas escravas domésticas, obviamente). Além disso, nós terceirizamos a ideia de cuidado, não estamos acostumados/as a nos ver como protagonistas desse processo. É uma estrutura focada no consumo, há sempre algo externo para trazer prazer, felicidade e alívio.
Diante disso, qual seria uma boa razão para pensarmos em coletivo? A empatia como os grupos de risco, tais como os idosos? Não, a nossa sociedade ODEIA OS VELHOS. Os anciãos e as anciãs são figuras desprezadas e vistas como eventuais inconvenientes. Eles atrapalham, segundo esse mesmo horizonte. Cultuamos a juventude, estética, principalmente, não à toa somos um país campeão no ranking de cirurgias plásticas do mundo. E o Estado elege como solução, o já velho e conhecido punitivismo, que, cinicamente, acompanha também os nossos discursos aqui pela internet. A jovem moça fica revoltada quando vê um senhor no supermercado, mas não visita seus avós há meses, é incapaz de levantar do seu lugar no ônibus quando entra algum idoso e foi a favor da reforma da providência, porque os velhos e os inválidos só oneram os cofres públicos. Esse é o comum discurso da hipocrisia que desfrutamos.
A pandemia em curso de COVID-19 é causada por um novo vírus que agrava e acelera velhos problemas. Em vários meios tem se falado sobre o impacto do coronavírus e grande parte da complexidade do cenário está ligada, ao fato, de que a crise sanitária torna latente questões sociais, estruturais e sistêmicas pré-existentes. A desigualdade social, o racismo estrutural, a violência doméstica, o feminicídio, a precarização das relações de trabalho, o sucateamento dos sistemas de saúde, o encarceramento em massa, a deterioração da educação pública, a intolerância religiosa, os padrões desenfreados de consumo, o neoliberalismo, os desequilíbrios ambientais, a militarização dos territórios e tantas outras formas e doutrinas de opressão podem ser citadas dentro desse contexto.
Segundo a OMS – Organização Mundial de Saúde, já temos mais de 1,5 milhão de casos confirmados da doença e cerca de 100 mil mortes em decorrência do vírus pelo mundo. Existe um consenso internacional, de que a forma mais segura de diminuir o aumento exponencial de casos é manter as pessoas dentro de casa e fora de circulação. O que é, também, uma consequência do sucateamento dos sistemas de saúde, incapazes de sustentar um atendimento massivo. Vários especialistas têm apontado o crescente desinvestimento na preparação médica de emergência, faltam suprimentos básicos nos atendimentos, tais como leitos e respiradores. Além disso, os profissionais de saúde, e as demais categorias que prestam um serviço considerado essencial em tempos de calamidade pública, sofrem com a falta de equipamentos de proteção e com a obrigação de cumprir demandas fora das suas atribuições legais.
Durante as últimas semanas, em situação de confinamento, já aprendemos que, se o vírus, por si só, não escolhe os indivíduos por sua cor de pele, gênero ou classe social, ele, de fato, não afeta a todas as pessoas da mesma maneira. Todos estão ameaçados, mas quem está mais vulnerável? Ao redor do mundo assistimos bilionários pegando seus jatinhos e se isolando em ilhas luxuosas particulares ou lugares afastados no globo, enquanto a maior parte da população se desespera sem saber como vai conseguir se alimentar, diante do crescente desemprego.
No Brasil, o presidente da República tem usado argumentos que, em resumo, nos dizem: lamento se muitos vão morrer, é a vida, mas a economia não pode parar. E quais corpos morrem, massivamente, diante de uma crise sanitária? Não é difícil responder à pergunta, tendo em vista, um contexto de tantas desigualdades na distribuição de recursos, renda e acesso a componentes básicos de saneamento, como a água. Alguns estudos realizados na Ásia apontam que o coronavírus permanece nas fezes dos infectados mesmo após deixar os pulmões e as vias respiratórias. Portanto, ainda pode ser transmitido a terceiros. Isso se torna ainda mais grave aqui país em que apenas 46% do esgoto é tratado, segundo o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia. Provavelmente, teremos uma carga viral enorme despejada nos rios, o que afeta gravemente áreas mais vulneráveis.
Logo, a pergunta que não quer calar é: quem pode ter condições adequadas de higiene todos os dias? Nos grandes conglomerados urbanos existem problemas sérios de infraestrutura, investimento e logística. Dessa forma, estar confinado em uma casa confortável, dentro de um bairro com saneamento básico, poder se alimentar bem e ter seu salário garantido no final do mês, mesmo sem o risco de fazer deslocamentos, é muito diferente do que estar em um território com falta de água, tensionado por operações policiais constantes e depender de um trabalho autônomo com a exposição na rua. Muitos trabalhadores estão, drasticamente, lançados a fazer uma escolha entre renda e proteção. Outras pessoas, tais como, as que vivem em abrigos, penitenciárias ou em situação de rua, não possuem, praticamente, nenhuma escolha a fazer. Algumas categorias profissionais, estão atuando diretamente na linha de frente, em serviços considerados essenciais no contexto de crise, e também não podem parar. Portanto, se a sensação de abandono, solidão e impotência é uma experiência nova para alguns grupos, para outros ela é cotidiana e intermitente.
Para a população em situação de rua, que vive na e da rua, além da falta de acesso à água e à itens básicos de higiene, existe um outro risco, que continua matando no Brasil: a fome. Com o fechamento de grande parte dos bares e restaurantes, que forneciam alimentos para as pessoas, isso se agravou bastante. No panorama de ruas vazias, sem possibilidade da realização de trabalhos informais e mesmo sem o recebimento de pontuais doações, resta contar com as políticas públicas de amparo e com o fortalecimento dos laços sociais e dos vínculos comunitários. Através de coletivos e iniciativas individuais, muitas pessoas têm sido assistidas com a distribuição de quentinhas, água e sabonetes.
No Rio de Janeiro, desde o dia 30 de março, o Sambódromo, na região central da cidade, recebe pessoas em situação de rua, após a realização das obras de adaptação nas salas de aula de três escolas, que funcionam embaixo das arquibancadas. A prioridade no acolhimento é de idosos, grávidas e mulheres acompanhadas de crianças, com a disponibilidade total de abrigar 392 pessoas. Outra opção, são os abrigos municipais, que já sofrem faz tempo com a superlotação, com a falta de funcionários e com a precarização das estruturas, além de registrarem constantes denúncias de abusos e violações de direitos. A partir do cadastro único, do governo federal, a defensoria pública do município do Rio de Janeiro estima que há cerca de 15 mil pessoas em situação de rua na cidade. Cinco mil dessas apenas na região do centro, segundo cruzamento de dados das assistentes sociais. Em contrapartida, o investimento na área vem caindo nos últimos anos.
Como diz o filósofo camaronês Achille Mbembe, autor do livro Necropolítica (n-1 edições, 2018): “O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”. Quem não tem valor dentro dessa lógica tem sido, facilmente, descartado, na história do nosso país. Grande parte do que hoje chamamos de Segurança Pública, está ancorada em um sistema punitivista, que defende propriedades enquanto despreza vidas. Os índices nos ajudam a refletir, segundo dados do Atlas da Violência 2019: 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil são negras.
Ao contrário do movimento que tem sido feito por muitas frentes, em campanhas individualistas, que trazem como única medida de contenção da pandemia o slogan “fique em casa”, precisamos lembrar que, ainda que seja fundamental evitar os deslocamentos, isso não basta para enfrentarmos o momento. Como garantir a maioria da população essa possibilidade? É preciso que sejam tomadas medidas públicas coletivas de redução de danos e apoio para a população sem emprego e/ou que se sustenta com trabalhos informais e precarizados. Como salientou a arquiteta, urbanista e ativista Tainá de Paula, em suas redes sociais na semana passada: “Não dá pra chegar e falar em fechar estabelecimentos sem um plano de crise que contemple contrapartida fiscal, avaliar contas de água e luz, abertura de linhas de créditos para equilibrar prejuízos e garantir empregos, etc. Esse debate é sanitário, é social e também muito racial. Afinal, quem é que ficará confinado no morro? ”. No dia primeiro de abril, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que sancionou o projeto que garante auxílio de R$ 600,00 mensais para trabalhadores informais, autônomos e MEIs (microempreendedores individuais). Entretanto, ainda há muito a se fazer.
Impossível pensar nesse quadro sem mencionar o trabalho doméstico. Profissão, dificilmente, vista como profissão e, constantemente, tratada como resquício de relações escravistas. Basta lembrarmos de toda revolta que gerou a PEC das Domésticas (PEC 66/2012), promulgada em dois de abril de 2012. Dentre as conquistas estavam a regulamentação da jornada de trabalho para 8 horas por dia, totalizando 44 horas semanais, incluindo o direito às horas extras. Ainda que a lei não garanta a efetivação real dos direitos, os trabalhadores domésticos formais podem reivindicá-la de alguma forma, o que revoltou grande parte das patroas e dos patrões pelo país. Diante da pandemia, o horizonte não seria diferente, um número expressivo das famílias, em isolamento, não liberou seus funcionários. E a primeira vítima confirmada, no Rio de Janeiro, que morreu do COVID-19, foi uma mulher idosa, de 63 anos, afetada por doenças crônicas, que trabalhava como empregada doméstica no Alto Leblon, que fica na zona sul da cidade e tem o metro quadrado de área mais caro do país. Sua patroa havia voltado recentemente da Itália, país com o maior número de mortes da Europa. Depois desse caso, diversas denúncias de pessoas em quarentena expondo seus empregados, sem liberá-los, eclodiu nas redes.
Nas relações de gênero a pandemia também tem efeitos seletivos. Quem é que cuida das cuidadoras? Segundo estudos da ONG Oxfam, mulheres fazem 75% de todo o trabalho de cuidados não remunerado do mundo. Sobrecarga de trabalho doméstico, exposição à violência e vulnerabilidade econômica são realidades que, infelizmente, fazem parte do cotidiano de muitas mulheres. Situações que não foram criadas pela pandemia, mas tem se agravado em meio à crise. No Brasil, é cada vez maior o número de mulheres empreendedoras, em negócios formais ou informais. Nas favelas e periferias da cidade, grande parte delas são “arrimo de família”, ou seja, da renda do seu trabalho depende o sustento da casa. De acordo com o IBGE, os domicílios que têm mulheres como responsáveis ultrapassou a barreira dos 30 milhões, em 2017. Em grande parte deles as mulheres cuidam da casa e criam seus filhos sem a ajuda de um companheiro.
Em 2018, a cada dois minutos, uma mulher foi vítima de violência doméstica no Brasil e, por dia, 180 foram vítimas de estupro, conforme apontou o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo os dados do “Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil”, só em 2013, foram assassinadas 4.762 mulheres no território nacional, o que coloca o Brasil em quinto lugar entre os países com mais casos de homicídio feminino do mundo. A cor da pele da maioria das vítimas também nos chama a atenção. Enquanto a taxa de homicídio entre as mulheres brancas caiu de 3,6 por 100 mil em 2003, para 3,2 em 2013, uma redução de 11,9%, entre as mulheres negras, houve um aumento de 4,5 para 5,4 por 100 mil no mesmo período, um crescimento de 19,5%.
Em muitos casos, para as mulheres, a casa não é um lugar seguro. É dentro do espaço doméstico que se corre o maior risco, e não nas ruas escuras, nos becos, no transporte público ou mesmo próximo aos terrenos baldios. A maior parte dos homicídios no Brasil são praticados contra os homens, mas a violência contra a mulheres assume uma peculiaridade assustadora: é efetuada em grande medida dentro da sua própria casa, por parentes, parceiros ou ex-parceiros. A perspectiva de isolamento com alguém que já é abusivo, seja verbal ou fisicamente, é, portanto, bastante perigosa. Fora isso, mulheres também sofrem abusos e violências nos abrigos públicos, em situação de moradia na rua, no sistema carcerário, nos hospitais, dentre outros espaços.
Presenciamos no estado do Rio de Janeiro, um aumento de 50% das denúncias de violência contra as mulheres em meio a pandemia, segundo as informações do TJRJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. No início do mês de março, a China já tinha constatado um aumento exponencial de casos no país desde que a quarentena foi decretada. Na Argentina, o assassinato de duas mulheres, mãe e filha, em Buenos Aires, fez os movimentos de mulheres convocarem um “barulhaço” contra os feminicídios (crime de ódio baseado no gênero). No Brasil, para agravar o cenário, o presidente da República, em declaração a jornalistas no dia 29 de março, disse que essa situação poderia ser revertida caso todos os brasileiros voltassem a normalidade da rotina de trabalho, mesmo contrariando as diretrizes de isolamento dos principais órgãos de saúde do mundo: “Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar? ”. Essa afirmação é, no mínimo, desonesta, pois sabemos que a violência doméstica e as altas taxas de feminicídio são questões sistêmicas e estruturais, que dependem, dentre outras mudanças, de políticas públicas para serem revertidas.
Segundo nota pública da CAMTRA, Casa da Mulher Trabalhadora, publicada no dia 01 de abril, “Infelizmente, o Brasil, segue na direção contrária dessas políticas, reduzindo o orçamento dos programas de assistência a mulher e combate à violência de gênero. Entre 2015 e 2019, o orçamento da Secretaria da Mulher do governo federal diminuiu de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões”. Ao invés de, adotar medidas de punição aos crimes, é preciso investir na prevenção. Vários estudos apontam que o feminicídio, diferentemente do crime de homicídio, por exemplo, traz em si um grau de previsibilidade, que pode facilitar a implementação de estratégias de prevenção.
Diante deste contexto é preciso estar atento/a para que não sejamos atropelados, ainda mais, de forma arbitrária, na violação de direitos, justificada de forma oportunista pelo contexto de crise. O autoritarismo, a lógica bélica e punitivista de controle, o sucateamento das relações de trabalho e a precarização do ensino começam a ser amplamente defendidas. Para citar uma medida como exemplo, no dia 17 de março, os Ministérios da Saúde, da Justiça e da Segurança Pública criaram uma portaria que torna compulsório o isolamento para o controle da expansão do coronavírus e prevê punição por descumprimento. Como bem sinalizou o sociólogo Breno Brigel, em matéria publicada na Folha de São Paulo, “É preciso neutralizar os negacionistas e os oportunistas de plantão, mas também reconhecer uma dimensão trágica no confinamento: ele é socialmente necessário, mas politicamente perigoso. Isto porque não podemos isolar a excepcionalidade das medidas típicas deste momento político com a conturbada conjuntura que vivemos no Brasil, na América Latina e no mundo”.
Grande parte dos intelectuais e pesquisadores, engajados socialmente pelo mundo, tem defendido a criação de um sistema de saúde integrado, gratuito e universal. O que contraria, completamente, a lógica capitalista neoliberal, que movimenta lucros exorbitantes para a indústria farmacêutica, aposta na privatização dos sistemas públicos e na precarização dos serviços e atendimentos. Entre o ideal e o possível, defender o SUS, o compromisso com a educação de qualidade, pública e gratuita, condições dignas de trabalho e moradia e a efetivação de políticas públicas que assegurem cidadania, torna-se, hoje, ainda mais fundamental e urgente. Fora isso, diversas ações localizadas têm mostrado como é essencial o fortalecimento dos laços sociais e dos vínculos comunitários e nisso, quem é negro, pobre, favelado e/ou periférico, tem muito a ensinar. O olhar para a favela não deve ser condicionado a demanda de conflitos e problemas, mas também precisa ser direcionado ao aprendizado sobre táticas e estratégias coletivas de existência, que extrapolam as diretrizes do ego, da meritocracia e do individualismo. A excepcionalidade, que por hora todos experimentamos, infelizmente, faz parte do cotidiano desses territórios, que tem como algoz principal, as próprias políticas e orientações do Estado capitalista, racista e genocida.
Vamos precisar voltar ao entendimento de “onde viemos” para passar por tudo isso. O terreiro educador, as filosofias não ocidentais e outras formas de construção de conhecimento, como das sociedades africanas, tem muito a nos ensinar.
Fontes
Para ver em tempo real os dados de mortes, curvas de contágio e mutações: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51987873
https://istoe.com.br/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa-no-leblon/
https://dmjracial.com/2020/03/17/militarizacao-estado-penal-e-coronavirus/
https://saude.ig.com.br/2020-04-02/covid-19-esgoto-pode-ser-propagador-do-virus-diz-estudo.html
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/24/Quais-os-impactos-da-pandemia-sobre-as-mulheres
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
https://www.dn.pt/pais/covid-19-quando-a-quarentena-e-ficar-com-um-agressor-11950326.html