> poesia preta lgbtqi de denúncia da dor até direito ao devaneio
“tingi tudo de preto”
(kika sena)
em 2015, integrando a coletiva otim de lésbicas negras diaspóricas com as sapatonas pretas jess oliveira y annie ganzala, propusemos uma oficina de recontação de itans num festival queer de pessoas negras e de cor que aconteceu em berlim. nos interessava pensar a cuíeraspora e montar um queerlombo de recontação de histórias negras de dissidentes sexuais. jess y annie foram pro festival, eu não fui. mas fiquei no gás de articular com outras pessoas por aqui a importância dessa conceituação negro-fundamentada da e desde a negritude diaspórica dissidente-sexual, especialmente no campo da produção poética – uns anos antes, na graduação em letras e depois no doutorado, pesquisei as palavras como comunidades compartilhadas em que poemas e prosa acadêmica alimentavam a constituição de subjetividades negras lésbicas frente às escasseadas referências que temos, resultado das tentativas coloniais de apagamento de nossa existência física, subjetiva, literária.
foi nesse fôlego que, em 2016, fiz o primeiro sarau queerlombismo no aparelha luzia (SP), convidando algumes artistes negras, negros e negrxs pra compartilharmos a potência de nossas palavras como arte preta diaspórica sexual-dissidente: (re)fundarmos nosso queerlombo – um que é reinventado a cada encontro, sonho, luta que temos enquanto contadorxs de histórias/narradorxs dessa produção outra e alterizada.
naquele momento, pensando ser estratégica essa recontação/invenção de histórias negras ancestrais pela possibilidade de des-heterossexualização/des-cisnormatização que têm na própria narrativa da diáspora (ainda dominada pelos discursos “autorizados” do dominador/colonizador), eu tava muito interessada nas histórias lesbianas de Oxum e Iansã, na transexualidade de Otim, e na metaforização do falo de Exu como dildo (essa, a partir das prosas sobre “o princípio exúnico do prazer sexual” que tive com o wanderson flor).
materializei isso em “marabô”, poema de abertura do meu livro “lundu,” (2016), que na primeira edição revelava “devanei(gr)os desde meu queerlombismo”: um achar-se ao achar a encruzilhada – ou, outra metáfora de Exu, deus da comunicação, num jogo curto de palavras declamando autoconstituição que montei a partir do verbo preto, ou empretecido. na segunda edição do livro, reconfigurei “queerlombismo” como “cuíerlombismo”, me apropriando da artimanha sudaca de tradução-retomada de termos gringos pra que tenham mais nossa cara, ou: recurso de descolonização conceitual que tem explorado a morfologia de um termo gringo pra reassentar sua semântica em bases mais latinas, pelo processo de rasurar/reescrever esse conceito-chave, “teoria queer/ queer studies”, sobre o qual tantas disputas têm sido feitas dum jeito que tenha a nossa (múltipla) cara: cuír, kuír, cuia; pra citar alguns – que aprendi com bibi abigail, jota mombaça, marissa lobo, respectivamente [1].
quando a notícia daquele sarau, queerlombismo no aparelha, se espalhou, algumes parsas vieram um pouco ressabiadas e/ou curiosas me perguntar sobre essa transformação de quilombismo em queerlombismo. muitas perguntando se a referência era mesmo ao projeto político/conceito fundado por abdias do nascimento [2]. pra muitas outras, a articulação entre queer e quilombo não era só evidente, pela parecença das palavras mesmo, mas algo urgente a ser celebrado y retomado como modelo pras nossas lutas e existências: compartilhávamos (e ainda compartilhamos) a noção de que um dos pilares mais rígidos e antigos do racismo diz respeito às expectativas sexuais que recaem sobre nossos corpos negros: expectativas que são não apenas hiperssexualizantes – mas hiperheterocisssexualizantes.
a negritude LGBTQI na/da diáspora ainda luta contra estereótipos que atribuem homossexualidades/dissidência sexual a uma “praga branca” contaminante de viris povos negros pela via da colonização, e consequentemente acusam de embranquecimento/colonialidade um bocado de orientações sexuais, identidades de gênero, práticas de sexo-afeto que são, efetivamente, negramente ancestrais y documentadas, por exemplo, em itans – contos fundacionais da cosmovisão iorubana que chegaram ao brasil pelo trânsito religioso, difundidos e mantidos por aqui graças à cosmovisão do candomblé (e muita apropriação antropológica!, via que me fez conhecer muitos dos itans, inclusive).
nessa visão estereotipada e homogeneizante, há uma sexualidade própria ou correta da negritude; y sua manutenção enquanto sistema ideológico, político, econômico, afetivo de controle dos corpos e sexualidades negras se dá na base de perseguição e morte, chacota, anulação existencial física e simbólica, enfim, fincada no não-reconhecimento à autodeterminação sexual preta lgbtqi tanto na diáspora quanto no continente [2].
dos itans cuíer/queerizados que acho estratégicos pra se pensar a ancestralidade da dissidência sexual na/da diáspora, gosto muito daquele em que Oxum seduz Iansã e do da acolhida de Otim por Oxóssi [3]. o primeiro conta que, depois de Oxum e Iansã terem um caso, Oxum some e parte pra outras conquistas. Iansã fica indignada com o desprezo e vai atrás dela pra castigá-la; Oxum se esconde num rio, e de lá não sai. acho indispensável ressaltar que, nesse itan, chamado “Oxum seduz Iansã”, o cerne da relação entre Oxum e o rio é a consequência de sua relação sexual com Iansã, ou seja, um de deus domínios simbólicos mais reconhecidos na diáspora, a partencença à água doce, se deve a ter tido sexo lésbico com Iansã.
os itans são complexos e pra, cada Orixá, às vezes há dezenas contando uma história parecida de formas muito diferentes (como o domínio dos rios por Oxum, mesmo). isso também acontece com Otim, Orixá pouco cultuado na diáspora (conheço apenas uma filha de Otim feita), geralmente tratado/conhecido como uma orixá caçadora companheira de Oxóssi (dependendo da história, o companheirismo é de ofício ou de sexo ou ambos). mas também existe o itan que conta que Otim era uma filha muito amada por um pai que guarvada seu segredo de ter quatro peitos e, quando o segredo é descoberto (pela traição de um marido que ela arruma lá pelas tantas), Otim corre virando um rio abraçado/recebido por Iemanjá (e mesmo o amor de seu pai, virando montanha pra tentar contê-la, é em vão).
mas também há aquele itan em que Otim era um príncipe lindo que vivia num reino farto até se cansar daquela vida e decidir fugir. Otim chega numa floresta sem saber nada necessário à sua sobrevivência e, passando perrengues como a fome, o medo, a solidão é finalmente encontrado e resgatado por um famoso caçador, o mais reconhecido da família “Odé”, que veste Otim com novas roupas e ensina a ele seu ofício. além disso, Oxossi guarda consigo, também, o segredo de Otim: que sua genitália é de peitos e vagina. ou, como diz o itan que li, que “Otim tem corpo de mulher”.
por que escolhemos, ao longo da história de transmissão majoritariamente oral dos itans, transmitir a história mais normativa em termos de sexo e corporeidade? por que o itan que conta da transexualidade de Otim é menos difundido? porque a história da colonização é uma de heterocissexualização, a forma com que alguns itans são mais ou menos divulgados também tem a ver com isso. por isso a recontação é imprescindível: pra que não morram essas raízes, pra que tenhamos subsídios históricos da dissidência sexual negra na diáspora, pra que a gente se livre da mirada htcisnormativizante que a colonialidade impôs a nossas trajetórias/existências/simbologias pré-atlânticas como tentativa de planificar e tornar rasas, homogêneas, narrativas, sexualidades, práticas, povos que são muito mais complexas que o binarismo homem/mulher católico difundido como parâmetro de sexualidade como parte da empreitada colonial (não esquecemos das fazendas de estupro montadas pelo sistema escravagista pra reprodução de mais corpos negros escravizados à exploração que formou a riqueza branca nas américas).
em “o espírito da intimidade”, a escritora sobonfu somé, burquinabê, conta como pra seu povo, a etnia dagara, é comum e socialmente inserida num contexto religioso a relação entre homossexualidade e espiritualidade. num dos capítulos finais do livro em que ela se dedica a compartilhar formas mais saudáveis, desde “ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos”, pra se viver a heterossexualidade, ela conta sobre os “guardiões do templo”, pessoas que fazem uma ponte entre o mundo de quem vive e o de quem já foi – e que são homossexuais.
talvez a colonização, em suas várias etapas ao longo dos séculos desde o XV, é que tenha levado pro continente as lgbtqifobias como as conhecemos – y ainda é colonial o esforço de cisgeneridade heterossexista de supremacia branca e capitalista na difusão, pela diáspora, de modelos binários/dicotômicos de sexualidade polarizada e fundamentada em padrões de reprodução via discursos muitas vezes disfarçados de “o modo africano de vida”. como se houvesse um único modo africano de vida, e não centenas de línguas, povos, culturas, ideologias conflitantes, matrizes cosmológicas distintas, hábitos, fazeres, pensares – afinal, África não é um país e tampouco um monolito cultural.
e a colonização, invés de um rasgo histórico que pára um momento no tempo, foi e é um projeto civilizatório de determinada matriz étnico-racial que exclui civilizações outras, e suas práticas/conhecimentos/modos de vida tradicionais, inclusive e de forma muito fundamental à manutenção de sua supremacia econômica, cultural e política. planificar as práticas, expressões, vivências e experiências sexuais que sejam divergentes ao seu modelo civilizatório ideal, entender um conjunto de povos milenares como um único povo dum único pensamento e duma única prática sexual é, assim, racismo colonial. acho foda/triste/assustador que estejamos, tantas, dentro de comunidades negras usando esse caminho pra deslegitimar as expressões “dissidentes” de sexualidade negra enquanto “embranquecimento”, “colonização” [4].
esse racismo colonial tem como outro de seus pilares mais firmes e funcionais a política de silenciamento dessas experiências nossas, velhas, tidas como outras: nossa existência também é negada pela condenação ao silenciamento. quando comecei a ler lésbicas negras, aprendi que pra muitas dessas escritoras (de poesia, prosa e/ou teoria acadêmica) uma urgência era/é criar nossas próprias palavras e/ou retomar palavras ancestrais, y com isso permitir que uma comunidade fundamentada na palavra autodeterminada seja criada: no caso, comunidades negras lésbicas. isso é o que audre lorde faz ao refundar o termo “zami” como sinônimo de lesbiandade negra na diáspora (pelas raízes caribenhas dela, e da palavra); é também o que cheryl clarke faz com sua poesia mito-arqueológica que reconta/reinventa histórias de lésbicas negras; o que barbara smith faz ao produzir crítica literária de obras de autorxs negrxs buscando personagens e tramas sexual-dissidentes (em especial lésbicas e gays), pra citar algumas.
quando eu tinha 20 e poucos anos não tinha acesso à produção nacional de lésbicas negras, especialmente produção literária; assim construí minha carreira de tradutora e assim também me conectei muito com essas obras em inglês. o trabalho de traduzir essas autoras pro português brasileiro foi parte de uma estratégia de buscar referenciais pra minha própria lesbiandade negra, ou seja, me constituir pela palavra aprendida com outras zami. cheryl clarke diz que a poesia tem sido a “grande professora da conscientização, da história, e do amor próprio” pros povos pretos, pras mulheres, pras lésbicas (2006, p. 140). porque isso se reflete no fortalecimento da minha lesbiandade negra a partir das palavras dela e de outras, penso que a gente sempre se aquilombou pela poesia, pela literatura, ao longo desses séculos de silenciamento físicos, simbólicos, epistêmicos.
daí minha pira com queerlombismo > cuíerlombismo como esse aqueerlombamento, processo de nos constituirmos através/a partir da palavra como queerlombo > cuírlombo, em que o remontar-se/recriar-se pelas palavras e o seu compartilhamento é um fazer mítico no sentido mais fundacional do termo: nos reinventamos não só apesar do silenciamento colonial htcissexualizante mas contra ele e (essa parte é a mais importante pra mim) a partir de nossas próprias narrativas ancestrais, desenterradas da memória que as histórias mal-contadas guardam, florescidas na pungência que nossos corpos e desejos brotam de Erzulie Dantor a Vera Verão – reorganizar nossa própria história, nossa própria narrativa, nossa própria subjetividade.
essa dupla-função de cuírlombo, “resistir e organizar”, aprendi com a atlântica beatriz nascimento, historiadora negra, que foi uma das primeiras pensadoras no brasil a contestar a conceituação tradicional racista de quilombo, politizando essa que foi uma das várias “formas de resistência que o negro manteve ou incorporou a luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica”; o quilombo “[…] representou na história do nosso povo um marco na sua capacidade de resistência e organização” (1985, p. 117).
é dessa assunção de resistência quilombola como exercício de liberdade que desdobro a noção de queerlombismo relacionada a uma responsabilidade: pelo direito de ser, de existir a negritude a partir de nossa identidade pessoal e histórica sexual/gênero-(des)identitária; resistência sim, e (re)organização também. agora, mais de uma década depois de começar minhas primeiras traduções, é deslumbrante ver como tem, a cada ano, mais literatura negra lésbica, transexual, travesti, gay, cuíer sendo produzida y publicada no brasil, em português. por isso tenho, duns anos pra cá, me dedicado a conhecer mais essas obras y, não só, me interessa muito ver de que forma temos criado novos mundos a partir dessas escritas.
a criação da padê editorial, editora que montei com a paulistana bárbara esmenia, tem a ver com esse desejo de conhecer y difundir mais “autoras negras y/ou lgbtqi que escrevem coisas que nos emocionam” – nosso foco y nossa política de publicação (sim, super subjetivas). kika sena, que aparece na introdução desse texto, é uma dessas autoras que convidamos pra publicar na padê. o poema “atire a.”, do qual transcrevi o verso que abre essa escrita, tá em seu livro “periférica” (2017, p. 65-66). escolhi kika sena pra me acompanhar nessa escrita porque “atire a.” tem alguns versos-chave que me ajudam a entender melhor a responsabilidade e o desafio da nossa produção literária da diáspora e da dissidência sexual na desconstrução/desmonte daqueles dois pilares de opressão: hiperheterocissexualização e silenciamento, pensando essa articulação queerlombista que é de resistência e reconstrução. no poema, ela diz:
“[…]
tacaram fogo nim mim
tacaram fogo no meu cabelo
tacaram fogo na minha pele
tacaram fogo nos meus olhos
tacaram fogo na minha respiração
tacaram fogo na minha voz
logo
não puderam me conter
poluí seus ares com meu grito
queimei suas casas caras brancas
com meu choro
queimei suas esperanças brancas
tingi tudo de preto
sou brasa forte
tição pós-apocalíptico
pior que deuses ditadores
não mexe
não mexe
não mexe
não mexe comigo não…
que à dor
à dor
à dor
à dor
eu sei reagir.”
uma das coisas mais sagazes nesse poema, pra mim, é a reversão de expectativas que uma única palavra, num único verso, cabulosamente estabelece: “logo”, na segunda estrofe transcrita, tem caráter de consequência aqui (e não temporal, como o advérbio também costuma caber). tipo: “se você planta, logo, vai colher” > “se você tenta me destruir, logo, não poderá me conter”. a tentativa de extermínio (tacar fogo nela, em seu cabelo, pele, olhos, respiração, voz), ao invés de destruí-la, tem esse então/daí/por-isso inesperado: a impossibilidade de contenção, de extermínio, de controle em que a tentativa de extermínio mesma resulta: a superação (surpreendente!) da expectativa. o fracasso da colonialidade [5]. y a voz da poeta polui o ar e tinge tudo de preto, porque ela sabe reagirà dor.
esse poema da kika tem me acompanhado muito em minhas andanças de conversar/apresentar/ensinar-aprender literatura preta lgbtqi porque me convoca pra pensar um ponto de virada: a reação à dor. como temos reagido/resistido à dor? como temos feito nossa poesia que ou fala da dor ou parte da dor e o que temos feito com ela? especificamente: como tornamos essa resistência em organização pra superação da dor? y, sim, até eu me rendo a esse trocadilho: como temos feito de nossa literatura nossa literacura?
em periférica, kika tem vários poemas que podem ser lidos como esses “poemas de resistência” mais óbvios (a noção de “poesia-manifesto” de daisy serena que expando em: poesia reativa/provocativa/vocativa), mas, como kika sena, a própria sereia, “y tem mais”. tô insistindo nisso porque, junto àqueles dois pilares que fundamentam as estruturas do racismo, tem um terceiro que também me incomoda muito: o estereótipo da resistência constante que congela a gente no frame da denúncia [6].
porque o racismo é sim uma máquina de morte, desumanização, silenciamento, interrupção de acessos, políticas de extermínio físicas/psíquicas/epistêmicas/religiosas/culturais. temos muita coisa contra as quais resistir. temos que ter muita força pra sobreviver mesmo. e em 518 (e contando!) anos da diáspora o povo preto no brasil desenvolveu e desenvolve muitas formas de resistência que são em resposta a esse sistema, inclusive essa poesia de denúncia do racismo. acho que ela tem sido responsável por pelo menos 70% do conteúdo da poesia negra contemporânea que acompanho/leio/recebo em saraus, batalhas (de poesia e de rima), livros autopublicados, blogs de poesia.
mas porque nós “nascemos primeiro no egito e depois nascemos aqui”, como malik, filho de raio gomes, falou outro dia, nossa existência não diz respeito unicamente ao que aconteceu depois do sequestro/tráfico/escravização. no quilombismo de abdias do nascimento, ele diz que “nosso ser histórico é de origem mítica. esta é uma lição da nossa arte que, ao contrário da arte do chamado ocidente, tem para nós o sentido de uma vivência, natural e criativa. alimento e expressão de nossas crenças e valores igualitários, assumimos esse poder do talento e da imaginação como o mais poderoso instrumento em nossa comunicação social e no diálogo com as nossas mais profundas raízes no espírito e na história. […] nem racionalismo europeu, nem mecânica norte-americana; arte é aquele outro olho, o olho de Ifá, que inspira, organiza, significa e infunde significação à nossa trajetória no mundo histórico e espiritual.” (1980/2002, p. 106). um pouco depois ele diz, também, “xingar não basta”. denúncia como diagnóstico, desconstrução, chama um passo mais: anúncio, (re)criação.
sim, nossos passos vieram de longe. sim, descendemos de rainhas e reis. y também de médicxs, curandeirxs, musicistas/instrumentistas, agricultorxs, botânicxs, tecelãs/ãos, escultorxs, visionárixs, ceramistas, cozinheirxs, coveirxs, aprendizes, mestrxs, astrônomxs, cientistas, linguistas, sonhadorxs, guerreirxs, coletorxs, arquitetxs, povos, enfim, que aprenderam muitas formas de ser gente no continente mais antigo do mundo. assim como temos muito contra o que resistir pra sobreviver a partir da força, temos muito de fartura, abundância, sabedoria, devaneio, conexão ancestral que nos permite viver a partir da graça.
a experiência dos quilombos retomava essa vastidão. os primeiros quilombos foram sistemas organizacionais complexos com produção cultural, convivência interracial, trocas de saberes, sistemas decisórios diversos, porque, sim, a fuga e a resistência eram uma parte do rolet: muitas vezes, o começo. todo o resto era a manutenção da vida cotidiana nas primeiras sociedades livres e bastante horizontais dum país em formação fundada em racismo, sexismo, exploração trabalhista, extermínio étnico. escravização. mais que “grupos de escravos fugidos”, os primeiros quilombos se constituiram como terras de pessoas livres.
beatriz nascimento é quem primeira articula esse alcance ideológico-místico dos quilombos como criação de sociedades livres no coração da escravização: “é no final do século XIX que o quilombo recebe o significado de instrumento ideológico contra as formas de opressão. sua mística vai alimentar o sonho de liberdade de milhares de escravos […] é enquanto caracterização ideológicas que o quilombo inaugura o século XX. tendo findado o antigo regime, com ele foi-se o estabelecimento como resistência à escravidão. mas justamente por ter sido durante três séculos concretamente uma instituição livre, paralela ao sistema dominante, sua mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional.” (1985, p. 222/223).
reagir à dor é também saber recontar essas histórias. falar da dor nos permite começar a cura da dor (se é esse nosso projeto). olhar a ferida nos permite perguntar: como tratar a ferida? como transformar a cicatriz em tatuagem? por isso acho que, mesmo que denunciar o heterocissexismo seja uma necessidade constante de afirmação de nossas existências negras lgbtqi, assim como denunciar o racismo é uma urgência cotidiana de nossas existências negras lgbtqi, mas temos mais que denúncias pra fazer. especialmente pela nossa poesia.
contar que a lesbiandade negra começa com Oxum e Iansã é muito importante pra mim enquanto poeta, ficcionista, escritora, contadora de histórias, palavreira, e portanto pesquisadora/intelectual com um projeto epistêmico negro-sexual-dissidente palavreiro porque o itan ensina que, antes mesmo de existir o projeto cisheterossexista colonial de supremacia branca capitalista que funda a diáspora transaltântica, a “dissidência” sexual negra lésbica já existia. lembrar que Otim é transexual e que Oxossi, um grande símbolo de masculinidade provedora, hegemônica (atenção: eu não disse “tóxica”) abraçou e o protegeu como amigo, irmão, discípulo (e, quem sabe, até amante) é um remédio contra essas masculinidades negras tóxicas, transfóbicas.
o racismo tem tentado, secularmente, nos roubar o direito à existência plena, complexa, e diversa. mas o que somos é isso: seres complexos. não só máquinas de resistência e denúncia. até porque resistir ao estereótipo da resistência também é resistir! e, mais que isso, nos permite existir na plenitude que, desde o continente, aprendemos a construir como base fundamental de vida, do bem-viver. quem inventa a noção de miséria, escassez, pobreza, sofrimento como parte integrante de nossa existência negra na diáspora é a empreitada colonial de sequestro/tráfico/exploração. quem nos inventa como escravizados são os escravizadores. sempre fomos mais, sempre fomos antes, e sequer viemos pras américas pelo tráfico – aprendi isso com erica malunguinho e fabi carneiro me explicando e reexplicando sobre Luzia.
nossa produção textual, que é uma das pontes mais importantes que temos pra recontar e reinventar tanto dessas histórias nossas que foram apagadas (como mostram as obras literárias em ficção de conceição evaristo, toni morrison, dionne brand, alice walker, ana maria gonçalves, míriam alves), é também uma ferramenta importante que temos pra nos lembrar disso: do futuro. o que eu acho é que a gente, como poeta, artista, escritorx, performer, temos nos acostumado com o dever da denúncia e tamos esquecendo do direito ao devaneio.
a literatura é uma dessas artes com as quais inventamos mundos novos, possíveis, utópicos, inimaginados. pela palavra compartilhada nos aqueerlombamos. e criamos um cuierlombo não só de resistência – mas de sonho, de afeto, de semente. ressonância de beatriz nascimento y sua refundação conceitual do quilombo como um sistema político, ideológico, místico de organização da resistência negra à escravização a partir da criação coletiva de sociedades livres e autogestionadas. que sejam nossos quilombos cada vez mais queerlombos > cuíerlombos, de transformação não só das palavras que nos definem, mas de explosão y proliferação das definições que as palavras podem reinaugurar.
quando leio “poesia não é luxo”, de audre lorde, as palavras dela alimentam esse desejo meu de pensar literatura negra lgbtqi como esse espaço da experimentação, da criatividade, do inusitado/inesperado, visionário, (afro)futurista que “[…] é uma necessidade vital de nossa existência. [a poesia] forma a qualidade da luz dentro da qual predizemos nossas esperanças e sonhos em direção à sobrevivência e mudança, primeiro feita em linguagem, depois em ideia, então em ação mais tocável” (1984, p. 37).
queerlombismo > cuíerlombismo como política afetiva, hormonal, palavreira, cultural, sexual, revolucionária de fortalecer y florir o queerlombo > cuíerlombo de nossa palavra afiada, que não só corta os véus da história engessada, mas corta os laços com um futuro em que não podemos existir, sequer ficcionalizar. que nos desconecta de um projeto de mundo que não só quer que a gente morra – quer que a gente não sonhe. porque reagir à dor também tem que ser curar a dor, e porque recusar o projeto colonial htcissexualizante é refundar nossas próprias práticas/experiências/subjetividades negras cuíer, penso que mais que reagir, mais que denunciar, podemos nos recusar a fazer de nossa literatura unicamente um projeto de denúncia e desmonte desses modelos heterocissexistas que tentam apagar nossa queeráspora, tentando nos definir a partir apenas de sua mirada.
porque nossa mirada também é o anúncio dos mundos, subjetividades, epistemes que já havíamos construído, das que construimos no agora y das que construiremos a partir dessa negritude diaspórica sexual-dissidente ancestral. a poeta negra lésbica laila oliveira, no poema cosmos (2017), diz
“
elementos distraídos
pelo espaço
repara,
os campos de forças se chamam
em um segundo em anos luz
as galáxias se fundem
e do nosso pó de estrelas
é feito o futuro
”
é isso que eu tô falando: que poesia preta lgbtq que num tem que ser só sobre pow pow pow. pode ser sobre pó – de estrelas, pra fazer nosso futuro. y essa lição, assim como nossa dissidência sexual preta na diáspora, é tecnologia-ancestral dazantiga, é cuíerlombista afrofuturista.
como minha língua é território das parsas que me constituem, a partir das trocas que temos; como minha palavra é casa dos nomes das pessoas que me inspiram, me ensinam, me alimentam subjetivamente, culturalmente, poeticamente, politicamente, quero terminar essa escrita com uma menção de gracias à filósofa babadêra bibi abigail, que foi também quem me convocou a montar essa genealogia dos conceitos cuíerlombismo, cuíerlombo, que tenho falado y pensado há um tempo mas não tinha ainda dixavado teoricamente y numa produção grafada mais obviamente teorizante.
a urgência dessa grafia rolou porque foi criado, recentemente, um grupo de
pesquisa/estudo/intervenção chamado queerlombo. na página virtual do grupo, a primeira menção ao termo citava o poema “queerlombo”, do poeta brasiliense pedro ivo, que lançou recentemente seu “afroqueer: dor, luta, amor” pela padê editorial (fevereiro de 2018), como referência da palavra. fiquei bem #arrasiany com isso porque o poema foi escrito depois de pedro ter me conhecido, depois de ter sido convidado por mim pra uma das edições do sarau cuíerlombista, e depois de termos conversado algumas vezes sobre essa minha pyra com a noção de cuíerlombo que elab/m/oramos pela poesia preta lgbtq contemporânea y o processo de cuíerlombismo que essa produção inaugura no meio do cânone literário.
tudo bem galere ter conhecido a palavra a partir do poema de pedro. mas não foi aí que ela surgiu. y sobre isso, quando eu disse pra bibi que tava #xatiada com a dimensão de apagamento que a falta de referência tinha tomado, contei também que a melhor solução que achei pra desapagar foi pedir pra pedro inserir no livro a referência devida a mim. bibi me deu um incentivo gigante de escrever sobre os conceitos não só pra elaborar por escrito de onde me chegaram, mas também desse episódio-estopim no contexto de visibilização da autoria lésbica negra que pode (ou não) ter a política de citações: “mas se estamos falando e construindo cuirlombismo, e comunidade acuirlombada, acho importante pensar essa política das citações, essa retomada dos ancestrais, às vezes epistêmicos. derrida fala que ninguém pensa sozinhx. construir uma comunidade através dessa palavra-acontecimento significa reconhecer quem veio antes, quem abriu o caminho da vereda, significa criar rede, dar os nomes.” (bibi abigail, comunicação pessoal comigo, 2018)
então pronto: nome tá dado, explicado. que espalhe, ecoe, voe: são as nossas asas.
notas
[0] publicado por primeira vez no meu blog palavra preta: https://palavrapreta.wordpress.com/2018/03/12/cuierlombismo/ [1] acho legalzão o artigo em que harriet malinowitz refunda a genealogia de “queer” a partir de audre lorde, em “estudos lesbianos e teoria cuíer pós-moderna”, tradução minha e de luiza rabello disponível em <http://periodicos.unb.br/index.php/revistadoceam/article/view/9950>. [2] o programa de abdias do nascimento define o quilombismo como “[…] um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares” e que tem como finalidade básica “promover a felicidade do ser humano” (1980/2002, p 369). [3] na diáspora, o mito do negro estuprador (e especialmente estuprador de mulheres brancas) fundamentando a invenção do termo linchamento e a racialização dessa prática, baseada na atribuição do terror à sexualidade negra masculina; no continente, vocês lembram quando, em 2014, o presidente de uganda sanciona lei de criminalização da homossexualidade defendendo a lei como “luta contra o imperialismo social ocidental”? [4] no livro “santos e daimones”, a antropóloga rita laura segato compilou alguns itans – o primeiro, conheci através desse livro. o de otim, no livro “mitologia dos orixás”, do também antropólogo reginaldo prandi, compilador de itans recolhidos entre yalorixás e babalorixás que cita no final do livro. segato e prandi são brancxs. [5] lembrei de um dos meus poemas preferidos, que é de lucille clifton, “wont you celebrate with me”, nos versos em que ela diz: “vem celebrar comigo que todo dia / alguma coisa tentou me matar / e fracassou”, inspiração pra canção “antiga poesia” de ellen oléria, que os recita/remonta cantando “todo dia / alguma coisa tentou me matar / e eu me refiz”. [6] marquei dissidentes ali pra me lembrar do que eu mesma estou escrevendo: que as práticas sexuais/as expressões de identidade de gênero não-heterocisnormativas são negramente ancestrais. então a dissidência aqui nesse texto é com o modelo sexual do projeto civilizatório colonial. [7] e que me parece muito nutritivo ao paladar do olhar sádico, que se compraz ao ver e rever corpos negros sofrendo (e existe um treino jornalístico dessa mirada, o qual associa a sensação de “segurança e bem estar do cidadão de bem” à exposição de corpos negros, jovens, de homens assassinados pela polícia nos programas que são servidos pela televisão como prato principal à mesa do almoço). tenho tido muito cuidado, enquanto poeta, de escolher meus repertórios atenta à composição racial do público que me expecta pra não ficar exibindo minhas entranhas pra quem só quer me devorar. e procurado formas de expressar poeticamente uma pedagogia antirracista negro-orientada, ao invés de branco-responsiva/branco-instigadora. o contraste mais óbvio, pra mim, tá entre os poemas “cuíer A.P.” e o “diz/faço qualquer trabalho…”: o primeiro é pra/sobre “eles”. o segundo é pra/sobre “nós”. e eu amo muito mais o diz/faço (na real tenho uma grande implicância com o cuíer A.P.), mas por algum tempo fui mais conhecida como autora do apocalipse que do quizila (os apelidos que as pessoas dão pra ambos poemas).referências
clarke, cheryl. the days of good looks: the prose and poetry of cheryl clarke, 1980 to 2005. nova iorque: da capo press, 2006.
lorde, audre. poesia não é luxo. tradução minha de poetry is not a luxury. ensaio do livro sister, outsider: essays and speeches. nova iorque: the crossing press feminist series, 1984. tradução disponível em: <https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/13/poesia-nao-e-um-luxo-de-audre-lorde/>.
nascimento, abdias do. o quilombismo. 2. ed. brasília/rio de janeiro: fundação palmares, or editor produtor: 2002. [1980/2002] disponível em: <https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/quilombismo_final>
nascimento, beatriz. o conceito de quilombo e a resistência cultural negra. no livro eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de beatriz nascimento, de alex ratts. são paulo: imprensa oficial, instituto kwanza: 2007. [1985/2007] disponível em: <https://www.imprensaoficial.com.br/downloads/pdf/projetossociais/eusouatlantica.pdf>
nascimento, tatiana. lundu,. brasília: padê editorial, 2016. [2. ed. de 2017]. disponível em: <https://palavrapreta.wordpress.com/2017/12/04/lundu-na-rede-viva-o-pdf/>
oliveira, laila. poema cosmos, do projeto “aceita um poema?”, em que a autora entrega poemas datilografados avulsos (dei sorte de ganhar exatamente esse!). são paulo: edição da autora, 2017.
sena, kika. periférica. brasília: padê editorial, 2017.
somé, sobonfu. o espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre relacionamentos. trad. deborah weinberg. 2. ed. são paulo: odysseus, 2007.
vídeos de poemas citados:
diz/faço…
cuíer a.p.
atire a.
Imagem de destaque: Boing Boing