Dia 30 foi um dia de luta, na verdade mais um, me parece que para nós negros o dia sempre é de luta. Sempre estamos no caminho a caminhar tentando nos afirmar, nos identificar, fazer parte de algo, estar ao lado de alguém, até mesmo o afeto mais puro para nós é sinal de luta. Mas esse dia foi o dia em que “o país” ou pelo menos parte dele resolveu parar para lutar contra as reformas que estão tentando ser implantadas em um governo que não reconhecemos como legítimo. Dia 30 de junho de 2017, o dia da “Greve Geral”.
Queria poder falar o quanto participar desse dia me fez crescer politicamente enquanto pessoa, universitária, mulher Negra. Este foi meu segundo envolvimento, depois do ato a favor da liberdade de Rafael Braga nesse campo de luta “mais ativo”, por isso, hoje olhar tantos grupos com ideais diferentes, tantas pessoas com ideais diferentes unidas em prol de algo maior me fascinou os olhos e levou esperança para o meu coração a primeira vista. Era disso que hoje queria falar, Esperança. Queria falar o quanto os gritos “de ordem” vinham do meu coração, o quanto aquela multidão movia o que parecia adormecido em mim, o quanto as reformas e o governo atual devem cair pois ambos ferem a minha “humanidade”, o quanto eles ferem a minha capacidade de sonhar com uma vida menos precária. No entanto este momento durou pouco e o que restou dele foi o total sentimento de incapacidade diante das injustiças da vida, diante das injustiças de uma sociedade fascista e racista.
Durante o ato, contra as reformas, em dado momento subindo uma ladeira, na cidade de Santa Maria, próximo a praça Saldanha Marinho, quando olho para o lado esquerdo em meio a “gritos de ordem” o que vejo me gela o coração e a alma. São crianças negras de 12 a 15 anos de joelhos e mãos na cabeça como marginais, sendo “abordadas” de forma nada convencional por um grupo, seis ou mais, de policiais. Perguntei-me “o que aconteceu?” “O que eles fizeram”, “Porque tantos policiais para abordagem de meninos?”, “Porque colocá-los de joelhos e depois não satisfeitos ainda empurrá-los para a parede??”, “Porque empurrar as cabeças deles assim para olharem para o chão??” “Por que meu deus??” Nada me respondia essas perguntas, e algo se debatia dentro de mim entre raiva e descrença na vida. Fiquei pensando o quanto estava sendo ingênua acreditando na tal “esperança” e tudo começou a oprimir meu peito. “E se fosse meu filho ali?” Como ser “platéia” de algo tão cruel como o racismo?!
Minhas pernas travaram, assim como tudo dentro de mim, os “feridos” pela vida e pela cena dos meninos também pararam enquanto o resto do “pais” continuou sua marcha contra as reformas. Eu não pude seguir e abandonar minha oração silenciosa para aqueles meninos que tão novos já eram vítimas desse estado racista. Quando me dei conta já estava gritando “Não acabou tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar!”, nunca senti tanto essa frase ecoar em meu ser como hoje, nunca achei que ela fizesse tanto sentido. Aproximei-me gritando do local, sem antes não esquecer de olhar para o meu irmão do lado um jovem como eu Negro e dizer “calma” sem nem mesmo conseguir conter a calma em mim.
Havia um policial debochando dos gritos e em certo momento ele me encarou, meu impulso era ir pra cima dele, a raiva era tão grande em mim que podia agredi-lo sem pensar duas vezes, mas o jovem negro com quem eu havia falado antes tocou em meu braço e dize, “calma”, contento dentro dele o mesmo impulso que eu estava sentindo. Não me acalmei, mas me contive quando olhei para uma mãe atordoada com o acontecimento. Fui falar com ela, tentar pelo menos ouvi-la pois não havia nada que eu pudesse dizer. Olhei em seus olhos que transpareciam raiva e dor e para meu espanto ela reclamava dos nossos gritos, do porque queríamos o fim da polícia militar se tem tão pouco policiamento, ela dizia que morava no sem-terra e queria ser protegida.
Eu a ouvi, afinal como explicar naquele momento de dor que a polícia é a que mais mata em nosso país?? Como explicar pra aquela mãezinha que segundo o Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública , homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no País sendo que a população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios? Homicídios esses cometidos muitas vezes por este “órgão” que deveria nos proteger?!Como explicar que doía em mim também ?? Silenciei e resolvi “simplesmente” ouvir atenta o seu desabafo dizendo que os meninos estavam andando e quando eles viram a polícia se assustaram e correram. Por quê?
Porque eles sabem e sentem que na maioria das vezes a polícia não os protege e arruma motivos para incriminá-los. Havia medo nos olhos de algum deles e “costume”,“rotina”, nos olhos de outros como se eles já se conformassem em serem “barrados “dessa forma.
Voltei para o lugar onde estava antes, com lágrimas nos olhos, tentando apertá-las no peito, porque precisava continuar a marcha até em casa. Quando olhei para o lado vi o jovem Negro que me dize “calma” abraçado em uma menina, chorando. Fui até ele e o abracei também, as palavras não cabiam naquele momento. Depois me distanciei dele enquanto as pessoas ainda o “seguravam” como uma criança desamparada, olhei para o lado em lágrimas também, vi alguns negros universitários que pareciam “conformados” com a situação ou talvez “anestesiados” com esses acontecimentos, e eu chorei ali entre tantas pessoas, chorei porque não consegui segurar as lágrimas, não havia mais espaço no peito, chorei pelos meninos que depois que seguíssemos nossa marcha iriam ser pegos em outra esquina pelos policiais e provavelmente tomar uma “sova de pau” para “aprenderem a tomar juízo”, chorei porque diferente do jovem negro “segurado” como uma criança desamparada não havia ninguém ao meu lado como se já esperassem que eu fosse forte diante de tanta injustiça. Vi-me mais uma vez sozinha e percebi mais uma vez o quanto ser mulher, e ainda negra, doí. Estava ali parada preocupada com os meninos que poderiam ser meus filhos, com o jovem negro que estava sendo acolhido entre tantos “braços” e afetos, com os demais negros anestesiados diante do acontecido e silenciosamente matando minha vontade de querer um abraço para derramar minhas lágrimas e dizer que doía por mais forte que eu parecesse estar.
Os policias finalmente depois de algum tempo resolveram soltar os meninos ( até quando?! me perguntei) e nós seguimos o ato contra as reformas. Meu corpo pesava, estava escuro e a lua gigante, parecia não ter espaço em mim para mim mesma. Seguimos, os meninos cada um para sua casa ou até a próxima esquina, o jovem negro ainda entre abraços e afetos e eu sozinha com aquele nó na garganta olhando para o céu tão distante e bonito e me perguntado “Porque Deus, por quê?!”
Eu parecia não ter voz, na verdade não queria me ouvir porque tudo dentro de mim gritava desespero, raiva, tristeza, morte, dor. Talvez hoje eu só quisesse um olhar daquele jovem negro pra me dizer que tudo ficaria bem, talvez eu quisesse os “braços e afetos” junto com ele me dizendo que eu poderia “esmorecer”, talvez diante de todo o acontecido eu não quisesse ser rocha como fui.
Antes de hoje eu estava pensando no amor, e como amar alguém, um homem negro, como eu, também era um sinal de resistência, enquanto esse mesmo homem dava “preferência” a suas “lutas” e a “afetos brancos” e eu “sofria” com isso. Depois de hoje é como se não existisse tempo para o amor, como se ele e a esperança fossem insignificantes, porque há pessoas como eu, negras, morrendo a cada esquina exclusivamente pelo fato de serem negras e na maioria das vezes periféricas e isso é estrutural e institucional. Depois de hoje sinto que ou eu desisto da vida ou eu preciso ser forte porque não terá ninguém pra me “segurar” no percurso da caminhada. Depois de hoje morri um pouco mais e matei a tal esperança dentro de mim, mas eu sei que talvez seja só por hoje e amanhã eu escolha amar de novo e lutar amando, mesmo sozinha, porque como dize Martin Luter king temos sonhos adiados, esperanças dilaceradas mas não podemos desistir da vida. Por isso talvez eu continue amanhã mas, mais por aqueles meninos do que por mim mesma.
O que para mim ficou de hoje, além dessa dor de incapacidade e raiva, é o cuidado no olhar com as mulheres negras em minha volta e suas “forças”, a não conformidade e o não “anestesiamento” diante de atos racistas como os de hoje, a luta que por vezes me mata mas que talvez em algum dia fortaleça meninos como os de hoje que por fora riam do acontecido, por ser algo corriqueiro em suas vidas, mas por dentro só eles (eu) sabem da dor de ser negro em uma sociedade majoritariamente racista.
Referência:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/atlas-da-violencia-2017-negros-e-jovens-sao-as-maiores-vitimas
Imagem destacada: Dartanhan Baldez Figueiredo (Do espetáculo “sob a pele” de minha autoria)