TW: Trigger warning (Aviso de gatilho) – este texto traz relatos tristes e que podem comover você. Caso esteja sensível, recomendamos que tenha cuidado.
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Os meus pais morreram faz pouco tempo. Eu era muito próxima a eles, conhecia-os profundamente em suas dores, seus dilemas, seus afagos e ternuras, que, por vezes, chegavam até mim disfarçados de um enfurecimento, mas para o bem. Apesar do ambiente em vivíamos a violência nunca foi o mote para as nossas ações.
Ainda sinto assustadoramente tais ausências, receio que sempre sentirei. Angustia-me acreditar que aquilo que mais tínhamos em comum, o que tanto amava neles ainda existe em algum lugar dentro de mim, somos seres sociais, nossa primeira socialização é sempre familiar, seja esta formada como queiram, num tipo de família que desejem ter e não em uma família nuclear como sempre fora apregoado por aí, a família são aqueles que nos ajudam a ser humano.
Em algum lugar, caso existisse a possibilidade, eu pediria somente 20 minutos, seria um abraço e uma conversa, daquelas que eu falava sem parar, disparatada, apenas para contar as novidades, as notícias mais recentes. Ao meu pai as loucuras políticas, à minha mãe minha indignação diante de tudo. Sim mãe eu entendi que temos que lutar, mas ainda não consigo mentir a mim mesmo, acreditar que tudo vai mudar e dar certo! Ter uma esperança renovada a cada dia, hoje entendo que assim, pensando o novo a cada dia, vida se torna mais fácil… ainda me lembro quando ela dizia isto, não pense tão negativo! Mas era um tanto difícil ser confiante quando se é sempre rejeitada. Também aproveitaria o tempo para relembrar que ainda vos amo. E acabariam os 20 minutos.
Há uma parte de mim, por mais boba e infantil que pareça, que pergunta – onde eles estarão? Juntos, será? Por vezes e muitas, sonho que estamos a conversar e logo acordo assustada, como um sinal de atropelo impávido. Daí me recordo, eles morreram! Os sonhos são reais, vejo meu pai ali a ler seu jornal no domingo pela manhã após buscar o pão quente para família, ele acordava as seis mesmo após sua aposentadoria, manteve o hábito da fábrica, transmitindo-me, ainda sem verbalizar, que o trabalho nos consome rotineiramente. Minha mãe a levantar em seguida e fazer o café enchendo uma garrafa, daquelas pretas que apertavam ao centro, a nossa era sempre vermelha. Nunca entendi porque! rs Todos os dias quando acordo, após estes sonhos, passo novamente por um luto abreviado, há qualquer coisa dentro de mim que me faz querer acreditar que estejam por aí embora eu mesmo considere tal hipótese um disparate.
Por este motivo não dou risada das pessoas que conversam com seus entes nos seus túmulos, se as pessoas têm dificuldade com o estatuto daquele ser inexistente com quem conversam não sou eu quem as julgarei. Isto é diferente de aceitar que alguém fale por sentimentos que só eu vivi, não será um terceiro a mediar estas relações, ainda mais com informações nada verificáveis. Eu não converso com nada sobrenatural eu converso comigo e com aquilo que me foi deixado em consciência viva.
Quando tomei consciência da minha própria mortalidade, através da morte dos meus pais, a principio não queria mais viver, afinal que sentido teria? Passado dois anos penso que quero viver mais e mais e colocar em prática aqueles valores que foram a mim transmitidos. Ambos pagaram um preço imenso por viver neste mundo.
Neste tempo que passou tive que retomar uma consciência inaudita dentro de mim, uma espécie de lucidez que as vai se esvaecendo. Esmorecer, às vezes, parece-me normal, todos sofremos de diferentes formas e a morte nada mais é que o silêncio, o fim de uma história. Sendo assim, como mulher negra, filha de um pai negro, morto pelo próprio silenciamento, decidi nunca mais me calar, nunca mais deixar-me viver por meio de pensamentos expressados em estreitos silêncios que causam o adoecimento. Falar sempre, sem medo de ser sentenciada ou incorreta, também quero ouvir os outros e outras e aprender sempre.
Foi descobrindo isto, conhecendo em outras mulheres próximas a mim e preocupadas comigo, que consegui perceber algum valor na vida de todas estas mulheres. Como dizia Audre Lord, negras, brancas, lésbicas, bissexuais, todas são arrasadas pela tirania do silêncio, compreendi que mesmo órfã não era a única vítima, mas era também uma lutadora. Já que mesmo entre mulheres temos que lutar para ser a mulher Negra, lutar pela nossa humanidade, sem recear a visibilidade que nunca nos foi dada. Sem temer o julgamento, a dor e até morte. Hoje sozinha, consigo me afastar do que vivi e ao olhar para trás percebo que o isolamento e a minha quietude tinham uma razão de ser, grande parte das mulheres negras sabem disso o contrabalançar do tempo em que passamos sozinhas, em nossos sofrimentos e baixa estima, também os homens negros, como meu pai, todos adoecidos em suas diferentes formas de racionalizar o sofrer.
Ainda que eu não queira todos os dilemas escritos neste pequeno excerto são de uma maioria de mulheres negras que quando são interrogadas sobre suas vidas privadas parecem se sentir violadas, fomos ensinadas a ter medo, mesmo quando a vida nos oferece um encorajamento. Usar a escrita como escape é que faço como forma de romper com o silêncio procurando uma identidade que me foi roubada, nossa mente é um veiculo estranho e por muitas e muitas vezes, a depender das nossas vivências, por mais que tentamos lutar e ir além, acabamos sendo impedidos e somos carregados, não por forças do além, mas pelos próprios infortúnios e tragédias que vivenciados e incompreendidos, resistem no nosso consciente.