“O sonho de que falo aqui é a nossa constante busca pela democratização deste país, um sonho que atravessou o Atlântico no coração de milhares de africanas e africanos sequestradas/os, desumanizadas/os, arrancadas/os de suas terras, de suas famílias e, talvez por instantes, até de sua fé. Essas pessoas lutaram bravamente por quase quatro séculos pela sua liberdade. E, passados 136 anos da abolição, ainda continuamos lutando pelo direito de existir.” Ticiane Caldas
Talvez não seja irresponsável dizer que estamos diante de um dos piores cenários da história se considerarmos todos os desafios que enfrentamos nas últimas décadas. Em especial nos últimos 10 anos.
Não estamos falando de uma linha reta, mas de uma costura complexa que entrelaça racismo, capitalismo e violência em múltiplos sentidos e direções no espaço, no tempo e em nossos corpos. Uma trama feita de ondas que vão e vem, se cruzam, retroalimentam e se refazem com uma velocidade potencialmente capaz de comprometer a nossa capacidade de agir, nos colocando em posição de quiçá somente reagir.
Instabilidade política e econômica, graves ameaças a uma democracia de fachada, fome, retrocessos que tocam nossos corpos a todo instante. Crise habitacional, horizonte e arte artificiais. Voltamos a falar de cenários nucleares, abrigos ao custo de milhares e milhões. A todo instante somos tocadas pela crise climática, falta água, falta energia, faltam recursos de toda sorte. Ainda assim alguns se deslumbram com esse cenário como oportunidade de negócios.
E no meio de tudo isso, tivemos uma pandemia em que precisamos explicar como e para que são feitas as vacinas, por que é importante pensar coletivamente. Por que tantas mortes poderiam ter sido evitadas. Tivemos de reafirmar o que é ciência enquanto víamos nossas famílias morrendo como moscas ao passo que as grandes potências de hoje de outrora disputam novos mercados.
Talvez alguns atribuam tudo isso ao acaso, a um simplório desenrolar de fatos e da história. Mas não. Estamos falando de estratégias muito bem construídas que nos trouxeram até aqui. A metodologia centenárias que nos colocam como menos recursos humanos, ou ainda inumanos, dessa engrenagem ciberpunk onde e quando poucos podem tudo. Inclusive decidir sobre quem vive e quem morre.
A nostalgia se tornou regra e negócio. No cinema grandes regravações dos mesmos roteiros do passado, no seriado do momento a década de 80 se torna um fetiche nunca vivido, a estética celebra a casa da avó das novelas de antigamente sem questionar os privilégios de quem nela vivia. Enquanto as telinhas do celular celebram a manteiga feita em casa, as lentes se fecham para quem precisa comer ossos.
No campo do pensamento, alguns se sentem atordoados. Fazem análises profundas de como os métodos de morte têm sido remixados e atualizados. Fazem diagnósticos precisos do que estamos vivendo. São indicados pelos grandes jornais internacionais e figuram na lista dos livros mais recomendados e vendidos, entram para a lista dos títulos banidos. Ainda assim são incapazes de propor saídas e alternativas ao estado das coisas como estão.
Este não é o caso do movimento de mulheres negras que, ao contrário do que muitos acreditam, tem contrariedades e obstáculos ao seu favor. Acreditamos que podemos mudar o passado através das nossas ações de agora ponto estamos cientes do que acontecerá ontem, do que tem sido nosso amanhã e o mundo que queremos e vamos criar.
Não por acaso que no Manifesto da Marcha de Mulheres Negras de 2025 é feita a seguinte pergunta: “O fim do mundo ou fim de um mundo?”
Uma resposta que tem sido reafirmada ao longo de 400 anos neste país por nós mulheres negras brasileiras quando matam nossas crianças, nossas familiares e a nós mesmas. Quando cuidamos das matas e das águas em reverencia a nossas ancestralidades. Quando recusamos os lugares que são construídos para perpetuar a subalternidade. Quando não nos calamos diante da invisibilidade e da destruição desse arremedo de tecido social que busca nos paralisar.
Respostas que foram condensadas na fala de Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer.” e se todo dia temos de dar essas respostas, muitas vezes cada uma em suas batalhas cotidianas e muitas vezes solitárias e silenciosas, decidimos dizer tudo que nos vai ao peito juntas, marchando e propondo o fim de um mundo de injustiças e morte.
Como disse Naiara Leite, coordenadora executiva do Instituto Odara da Mulher Negra e integrante do Comitê Nacional da Marcha de Mulheres Negras, “A Marcha, não é o dia, ela é o processo, ela é a metodologia que as mulheres negras constituíram para dialogar, se mobilizar, fazer a incidência política, refletir sobre a geopolítica e sobre os contextos e apresentar o que a gente tem chamado de um projeto político radical de imaginação das mulheres negras, que não é só para nós, mas que é para a sociedade brasileira.”
Um projeto de um novo mundo por nos fazer acreditar de forma concreta e simbólica que podemos não apenas sonhar mas desconstruir esse sistema de coisas. Podemos propor possibilidades mesmo diante de um mundo que arquiteta a escassez. É contraponto, coletividade e centralidade, é tecnologia.
Não a por acaso a Marcha de Mulheres Negras de 2025 é nada menos que um farol político e estratégico global de criatividade, inteligência e insurgência, construído por cada olhar trocado entre anônimas negras atravessando a rua, de cada reunião depois de um dia inteiro de trabalho,< e cada encontro e até mesmo desencontro de ideias. De cada tocar de tambor, da escrita laboriosa das mulheres nas universidades, de cada refeição posta à mesa com tanta dificuldade, de cada lágrima e de cada sorriso. É sertão, é cidade, é mata, é mar.
A Marcha tem sido sobre cada vaga de emprego negado, de cada gota de sangue derramado sem que qualquer crime tenha sido cometido. De mais um terreiro violado. De cada política pública não escrita, não implementada. Da falta de habitação, do preço do aluguel. Da vaga que a creche não tem. Da ação e do pensamento de mulheres que puderam e não puderam estar ou colaborar com a marcha, mas que à exemplo daquelas que vieram antes, não titubeiam diante da morte. É feito por todas aquelas, as que marcham pelo bem viver.
A Marcha de Mulheres Negras é metodologia, é memória, é tudo aquilo que nos faz acreditar que estamos e que nos coloca na direção certa, rumo a um mundo que sobreviverá ao atraso. Hoje temos mais e mais organizações articuladas local, nacional e globalmente. Mais e mais mulheres negras, ainda que sejam em número ainda insuficiente, tem ocupado espaços de poder político apesar de toda a violência de raça, de gênero e de classe. Mais e mais meninas têm se colocado cotidianamente para lutar por direitos.
O ano que se aproxima será próximo capítulo deste futuro.
Quando estaremos diante de uma eleição que não será nada tranquila. Os ataques a democracia continuam. Já surgem narrativas descabidas e racistas sobre a restrição do direito ao voto. Segue os ataques à pessoas que potencialmente podem renovar e consolidar quadros políticos. Por hora, a certeza que temos é que seguiremos em marcha e em disputa pelos imaginários, pelo clima, pelas nossas matas e florestas, pela água. Pelo nosso sagrado, por nossos corpos e nossas famílias. Por moradia, direito ao alimento e educação. Por nossas vidas.
O futuro está dado, mesmo que muitos nos queiram fazer acreditar no contrário.
